Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Entrevista a Luís Rodrigues

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O coordenador-geral do Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça (Ceeria) fala ao REGIÃO DE CISTER sobre o paradigma da vida de pessoas com deficiência no âmbito do espaço público.

Da janela do gabinete consegue vislumbrar uma boa parte da cidade e observou, ao longo dos mais de 30 anos que está ao serviço no Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça, as evoluções na sociedade no que toca ao relacionamento com pessoas com deficiência. Luís Rodrigues recusa qualquer elogio no que toca ao contributo pessoal para essas mudanças positivas na comunidade e prefere sempre partilhar os sucessos com a “família” da instituição. Apaixonado pela “condição humana”, facilmente se fascina ao debruçar-se sobre as relações interpessoais, em particular aquelas que envolvem pessoas com deficiência.

O coordenador-geral do Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça (Ceeria) fala ao REGIÃO DE CISTER sobre o paradigma da vida de pessoas com deficiência no âmbito do espaço público.

REGIÃO DE CISTER (RC) > O que é o Ceeria representa hoje, depois de 41 anos de trabalho, para a comunidade?
Luís Rodrigues (LR) > Há uma primeira fase em que pretende aumentar a visibilidade para casos de pessoas com deficiência. Ao ser criado, o Ceeria teve por função essencial retirar estas pessoas do anonimato das suas casas, escondidas no seio das famílias, como um estigma ou vergonha. Como muitas das organizações congéneres por esse País fora, teve esse primeiro grande desígnio. A sociedade passou a ter consciência que, de facto, estas pessoas existem e são nossos concidadãos. E se mais mérito não teve, o Ceeria conseguiu criar diversidade humana. Esta comunidade passou a ter consciência de que existiam concidadãos, pessoas que fazem parte das nossas relações, que não estavam visíveis. E esta instituição cumpre muito esse papel: dar visibilidade.  

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RC > Se atingiu essa missão, qual o propósito da instituição atualmente?
LR > Julgamos que atingimos essa missão. Houve uma segunda fase, e hoje continuamos a cumprir esse papel, em integrar as pessoas com deficiência. Se antes estas pessoas estavam escondidas, hoje passaram a estar no espaço público: nas escolas, nas empresas e nas instituições. Passaram a estar nos contextos públicos como serviços ou restaurantes, da mesma forma que o comum das pessoas. Esse tem sido muito do nosso trabalho. Dar condições e oportunidades a pessoas com deficiência de se incluírem na comunidade em que estão inseridas. Passados 41 anos, além de continuarmos, naturalmente, no processo de inclusão de pessoas com deficiência, ambicionamos outra fase: a da capacitação. Isto é, para que todos nós, pessoas com ou sem deficiência, aprendamos a nos relacionar de forma mais tranquila no espaço público. Quando uma pessoa com uma qualquer deficiência vai a um serviço público tem o direito de esperar que haja recursos para satisfazer todas as suas necessidades como qualquer outro cidadão. No trajeto que esta instituição tem feito, passou da visibilidade para a inclusão e esperamos continuar a trabalhar na capacitação, visando que não seja apenas o Ceeria e os seus colaboradores mas toda a sociedade a que todos consigamos estar em “relação” e em capacidade de satisfazer as necessidades das pessoas com deficiência. 

“Se antes as pessoas com deficiência eram escondidas pelas famílias, hoje conseguem estar muito mais integradas na comunidade”

 

RC > Como é que a sociedade encara a deficiência hoje em dia?
LR > A forma como hoje se pensa a deficiência nada tem a ver como se via no passado e, garantidamente, nada terá a ver com a forma que se verá no futuro. Todo o conceito que implica a realidade humana não é um conceito estático. Diria que passamos do modelo médico em que a deficiência era vista como uma patologia, cada vez mais hoje a deficiência é uma característica da pessoa. Não é algo que está a mais, que a pessoa carrega em si, mas como um traço da pessoa. Uns veem melhor, outros pior. É uma característica. É certo que a sociedade não evolui toda da mesma forma e ao mesmo tempo. Mas globalmente o paradigma da convenção dos direitos da pessoa com deficiência atual não é o mesmo de quando este projeto iniciou o seu caminho. Passados de um modelo médico e reabilitativo, em que se poderia trabalhar para corrigir a deficiência, para passarmos a olhar a deficiência de forma mais ecológica, no fundo a deficiência é uma interação entre a pessoa e o meio. Há meios em que, de facto, uma pessoa de cadeira de rodas está totalmente incapaz de satisfazer as necessidades da sua vida e há outros meios em que a mesma pessoa resolve todos os problemas tal e qual como eu. Daí que, cada vez mais, a deficiência assenta na interação entre a tal característica da pessoa e o meio onde se insere.

RC > Como é que olha para a deficiência?
LR > Como disse, a deficiência é um traço que caracteriza a pessoa. Olho a diversidade que nos caracteriza como pessoas como um potencial estruturante como humanos. Uma sociedade mais diversa é, por natureza, uma comunidade mais rica. Uma sociedade só de Cristianos Ronaldos é uma sociedade necessariamente muito pobre e que dificilmente se sustentaria. Esta diversidade é a nossa grande mais-valia. A diversidade acrescenta valor, é um ganho individual para todos nós. Relacionarmo-nos apenas com iguais, não nos permite o crescimento como pessoas. A relação com a diferença faz bem. E até faz bem à saúde: as neurociências explicam que a relação com a diferença é algo que nos mantém jovens. E esta “casa” também cria condições para que a comunidade se possa relacionar com a diferença. Sempre que levamos uma pessoa que apoiamos para uma empresa, uma escola ou instituição, estamos a acrescentar valor a esta comunidade.

RC > De que forma concreta é que a instituição apoia as pessoas com deficiência? 
LR > Temos várias valências para dar resposta às diferentes necessidades expressadas pela comunidade. Começamos a apoiar pessoas com deficiência desde que nascem. Temos um serviço de intervenção precoce, em complementaridade com os serviços de saúde e educação, para os concelhos de Alcobaça e da Nazaré. Procuramos responder no contexto real da criança, seja na residência ou na creche. Dar apoio quer à família, quer à criança e até aos agentes educativos que vão lidar com a pessoa com deficiência. Este serviço funciona desde os 0 aos 6 anos. Depois, apoiamos, também, na idade da escolaridade obrigatória entre os 6 e os 18 anos através dos agrupamentos de escolas dos concelhos de Alcobaça e de Porto de Mós. Neste âmbito, o que o Ceeria faz é em função de um plano de ação dos agrupamentos que sinalizam as crianças com necessidades especiais. Depois, continuamos a apoiar as pessoas ao longo da sua vida, dependendo do grau de autonomia de cada um.

“A deficiência hoje é vista não como uma patologia mas como uma característica dessa pessoa. Uns veem melhor e outros pior”

 

RC > Como é que se coordena uma instituição que apoia perto de mil pessoas e dá emprego a mais de uma centena de trabalhadores?
LR > É um trabalho extremamente exigente, extraordinariamente complexo que por vezes pode ser muito desgastante e cansativo. Diria que quando é clara a missão que temos, tudo se torna mais fácil. Se não soubermos o que nos move por vezes é difícil aguentar as pressões do dia a dia, sou sincero.   

RC > O que é que o move? 
LR > O que me move é o planeamento centrado da pessoa. Isto é, cada pessoa que o Ceeria apoia é um caso único. E aquilo que devemos fazer é ajudar a pessoa a concretizar os seus sonhos, desejos e vontades. Nós somos meros facilitadores. Não estamos aqui para dizer ao outro o que é melhor para ele mas para ser capaz de acolher o que o outro considera querer atingir na vida. O nosso trabalho é, fundamentalmente, ajudar a que estes desígnios se possam ir concretizando na sociedade. É evidente que é preciso ter em atenção os recursos que esta sociedade efetivamente tem para que possam concretizar o que ambicionam. Diria que a instituição é uma estrutura ao serviço das pessoas que apoiamos. Somos tão mais competentes quanto mais conseguirmos cumprir os desejos das pessoas com deficiência na materialização dos seus atos. Daí a enorme quantidade de serviços que o Ceeria disponibiliza, ajustado às necessidades e ciclos de desenvolvimentos das pessoas que apoiamos.

“Relacionarmo-nos apenas com iguais, não nos permite o crescimento como pessoas. A relação com a diferença faz bem”

 

RC > Uma grande parte da história do Ceeria tem em comum com a sua história. Com mais de três décadas ao serviço desta instituição, que contributo considera ter dado ao Ceeria? 
LR > Em primeiro lugar tem de ficar claro que o Ceeria é um projeto coletivo. Sem os colaboradores, órgãos sociais, comunidade, o Ceeria não é nada. O Ceeria somos todos nós e não o projeto de ninguém em particular, mas uma associação da qual todos fazemos parte. Foi assim que surgiu e é assim que se mantém e julgo que só assim é que se pode perpetuar no tempo. Quando o Ceeria não for isto, não é nada. O meu objetivo é o objetivo do Ceeria: ajudar a construir uma comunidade mais inclusiva, mais diversa e integrada. Tento dar um modesto contributo para isso. E sinto que esse é um dos sentidos da minha vida.

RC > Diz que o Ceeria só faz sentido enquanto projeto coletivo. Recentemente uma reportagem jornalística pôs a nu uma instituição semelhante ao Ceeria que parece ser gerida por e para uma pessoa apenas… 
LR > Estou absolutamente certo que, neste aspeto, sei que falo por todos. Nesta “casa” isto é claro: a instituição não é de ninguém em particular mas de todos em geral. Acidentalmente um de nós pode ser presidente ou diretor, mas é uma circunstância. O Ceeria só o é enquanto for uma realidade coletiva. E julgo que temos conseguido isso. É muito importante a permanente articulação com a sociedade e o escrutínio da atividade do Ceeria. Só assim se cumpre a função. Quando for um projeto de apenas uma pessoa, seja quem for, por muito interessante que possa ser, não é coisa nenhuma. O Ceeria procura ser isso desde a sua génese. Em todos os 41 anos de história, sempre foi um projeto coletivo, daí a sua vitalidade e maior capacidade que teve para fazer o percurso de serviço às pessoas.

RC > Como é que é o dia a dia no Ceeria? 
LR > Uma das parte do dia a dia passa muito pelo contacto com as pessoas, sejam as pessoas que apoiamos, as suas famílias e todos os colaboradores. E outra parte do meu trabalho também passa muito por estar a par do que se passa no quadro geral. Isto é, para poder acompanhar melhor a orientação desta casa, faço parte de uma federação, que me permite uma leitura de sistema. E a partir dessa leitura global vou conseguindo, no âmbito da instituição, antecipando mudanças que vão necessariamente ocorrer na sociedade e é importante que a instituição esteja preparada para essas mudanças.

“A deficiência é uma interação entre a pessoa e o meio (…) O trabalho do Ceeria também passa por criar condições para que a comunidade se possa relacionar com a diferença”

RC > Qual o próximo passo desta instituição? 
LR > Uma das coisas que já está aprovado pelo Governo de Portugal é o Programa de Apoio à Vida Independente. O Ceeria vai candidatar-se para a criação de um CAVI [Centro de Apoio à Vida Independente] que visa apoiar pessoas com deficiência nas suas autonomias pessoais, sejam elas quais foram. A ideia é contratualizar entre o CAVI e a pessoa que serviços serão prestados para responder de forma efetiva à necessidade dessas pessoas para as tornar mais autónomas em todos os momentos da sua vida. Demonstra de forma cabal como hoje toda a nossa sociedade se está a transformar. Não no sentido de criar instalações internas, onde as pessoas se deslocam para ser atendidas mas cada vez mais o contrário: somos nós que nos deslocamos aos contextos naturais de vida das pessoas para poder neles responder a necessidades concretas para que as pessoas tenham uma vida o mais autónoma possível. De forma cabal isto demonstra as mudanças na forma como a sociedade reage à deficiência. 

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