O conhecido advogado alcobacense recorda, em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, os momentos mais marcantes de uma “vida atribulada” pautada pela “luta política”, pelo exercício da advocacia, do jornalismo e pela farda de bombeiro. Sempre com o objetivo de combater pela “igualdade social”.
O conhecido advogado alcobacense recorda, em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, os momentos mais marcantes de uma “vida atribulada” pautada pela “luta política”, pelo exercício da advocacia, do jornalismo e pela farda de bombeiro. Sempre com o objetivo de combater pela “igualdade social”.
REGIÃO DE CISTER (RC) > Advogado, bombeiro e jornalista. Qual destas atividades melhor o caracterizam?
basílio martins (BM) > Começamos bem. Essa é a resposta mais difícil que há. Gosto de todas em geral, ponho-as todas em linha. Empate técnico. Mas se as colocarmos por ordem cronológica, as primeiras em que me envolvi foi o jornalismo e o ser bombeiro.
RC > Qual seguiu por vocação?
BM > Por vocação natural talvez tenha sido o jornalismo. Sempre gostei muito de jornais e de escrever, desde muito novo mesmo. Mas, pensando melhor, também sempre gostei muito de ser bombeiro. Comecei a escrever crónicas de jogos de hóquei em patins ouvindo os relatos na rádio. Escrevia-as para os meus cadernos, não era para publicar em parte nenhuma. Isto começou quase logo quando aprendi a ler, na escola primária, praticamente.
RC > E quando é que as crónicas saem dos cadernos e passam para os jornais?
BM > Comecei a ler jornais muito cedo e lia muito “A Bola”. Aquilo tinha uma riqueza jornalística e literária notável. E comecei a ganhar o gosto pelo jornalismo. Gostava mesmo. Havia homens e jornalistas notáveis. E comecei a escrever para jornais, no início da década de 1960, n’O Alcoa.
“Comecei a escrever crónicas de hóquei em patins a ouvir os relatos na rádio”
RC > Depois vai estudar para Coimbra e vive de perto a tumultuosa crise académica de 1969…
BM > Em Coimbra, fiz o último ano do liceu, entrei em Direito e quando já estava, salvo erro, no 3.º ano, apanhei a crise académica, grandes manifestações de estudantes, greves aos exames…
RC > É aí que surge o interesse pela política?
BM > Lá está, o interesse pela política é resultante também, em certa altura, na sequência da Casa da Amizade. O trabalho do professor José Nuno Monteiro abriu-nos os horizontes em muitos aspetos. Ele influenciou uma grande parte daquela geração. E comecei a interessar-me por muitas coisas, uma delas foi a política e os problemas sociais. E em Coimbra vivi tempos mesmo magníficos, foi um tempo de grande aprendizagem, de conhecimento e esclarecimento, e também de luta política que me deu lições de cidadania para toda a vida. É uma luta no sentido político [risos], éramos todos muito pacíficos. Éramos e somos. Foi uma luta de manifestação contra o antigo regime, os estudantes lutavam pela liberdade e por uma “universidade nova”, mais aberta. Havia muitas manifestações e notava-se que a comunidade estudantil estava a lutar pelo exercício dos direitos e uma vida mais democrática. Lembro-me de uma grande manifestação na estação ferroviária em Coimbra, ao lado do Mondego, e há uma fotografia notável, em que estou com uma série de colegas numa manifestação contra a detenção de Alberto Martins, que então era presidente da associação académica, e de outros. Foi um ano de grande aprendizagem humana, cívica e política. Foi um ano notável para mim e para todos os estudantes. A malta não esquece esse ano e está quase a fazer 50 anos da maior crise estudantil da história do País.
RC > Mas já em Alcobaça se envolvia na luta política?
BM > Sim, mas era uma coisa muito mais simples e ainda mais pacífica. Havia um grupo de grandes democratas alcobacenses, como o Gilberto Magalhães Coutinho ou António Luís Ventura, que alguns de nós mais jovens já acompanhavam, que fazia distribuição de cartazes e propaganda. Aprendemos muito com esses democratas da época.
“A redução do número de tribunais não foi uma ideia feliz e parece que agora, felizmente, o Tribunal de família e menores vai voltar a funcionar em Alcobaça”
RC > Terminou a licenciatura em Direito em 1978. Que diferenças observou na advocacia ao longo do tempo em que exerceu?
BM > Não há assim tantas mudanças porque o Código Civil não mudou muito nos últimos anos. Os princípios gerais do Direito mantêm-se, o que mudou foram alguns aspetos práticos, com a informatização dos tribunais. Houve também uma “explosão” no número de advogados, especialmente na década de 1990. Hoje ainda continuo a exercer pelo gosto que tenho pela advocacia, e até para não perder o convívio com colegas, funcionários e magistrados.
RC > A duração dos processos judiciais mantém-se igual?
BM > Não sei se o tempo que demora cada processo aumentou. Mas, de facto, também não encurtou o suficiente para termos uma Justiça mais célere. Atualmente, há coisas que se fazem mais rapidamente. Mas as questões normais do dia a dia dos tribunais ainda continuam demasiado lentas. E, depois, há outro problema que também não ajuda a que os processos se decidam de forma mais rápida: a redução do número de tribunais. Isto não é uma ideia feliz. Parece que agora o tribunal de família e menores vai voltar a funcionar em Alcobaça. A reorganização do mapa judicial causou problemas a quem precisa da Justiça pronta e próxima.
RC > O que sugere para reduzir o tempo dos processos?
BM > Essa é uma pergunta mesmo muito difícil. Andamos, todos, a tentar respondê-la há anos e, enquanto isso, o tempo médio de cada processo não vai diminuindo. Mas para isso devia haver uma simplificação processual e um aumento de funcionários e magistrados. Só assim é que efetivamente se consegue acelerar o decorrer dos processos em Tribunal sem prejudicar os direitos das partes interessadas.
Os jornais são fundamentais para o desenvolvimento das regiões
RC > Qual é a importância que os jornais e o jornalismo mantêm nos dias de hoje?
BM > Ter uma imprensa ativa é muito importante. O jornalismo continua a ser essencial para a democracia e os jornais são fundamentais para desenvolvimento das regiões. As pessoas julgam que é fácil fazer o trabalho de jornalismo regional, quando às vezes é muito mais difícil fazer do que um jornal diário. Seja porque os meios não são os mesmos ou por estar muito próximo, às vezes é um trabalho muito difícil. É preciso fazer uma reflexão aprofundada para pôr as terras a funcionar. Quando reiniciámos o Voz de Alcobaça em 1980 escrevemos no editorial que é importante conversar a vida e este princípio vale para todas as comunidades. Noticiar o que acontece mas também sugerir, garantir um bom trabalho. Isto continua a ser muito importante, mesmo hoje em dia.
RC > Tem perspetivas de voltar a ativar A Voz de Alcobaça?
BM > Não sei, não podemos dizer nada. Houve um tempo em que as coisas corriam bem porque havia muita publicidade oficial, como as escrituras. E costumávamos dizer que toda a gente recebia o dobro do diretor e o diretor recebia o dobro de toda a gente [risos]. Esta é uma equação que só se resolve com zero. Nenhum de nós recebia nada. Mas tínhamos uma equipa muito interessante, com muito bom espírito. Quando o jornal reapareceu, em 1980, escolhemos para diretor Carlos Figueiredo, que tinha sido um dos fundadores, e contávamos com bons colaboradores, como Silvino Villa Nova, Palma Rodrigues, Jorge Barros, Rui Serafim, Jorge e Josezinha Vasco, Armando Lopes, José Soares, entre muitos e muitos outros, e a administração de António Maduro. Mais tarde a equipa passou a contar também com Amadeu Leal, José Alberto Vasco, Madalena Marques, Leonor Carvalho e outros.
RC > Há “espaço” em Alcobaça para três jornais, ainda que com periodicidades diferentes?
BM > Julgo que sim. Ainda não foi há muito tempo que a Ana Paula Lourenço [professora da Universidade Autónoma de Lisboa] disse que os jornais em Alcobaça não são concorrenciais mas sim complementares. E concordo com isso. O jornalismo é da maior importância que se faça e se continue a fazer. A malta tem de andar aí a “cavar” a notícia e conhecer a realidade se quiser fazer um trabalho bom e rigoroso. Quando me perguntam qual é o melhor jornal da cidade, digo sempre que são complementares. Para mim, a ideia da concorrência não se coloca e não é benéfica para nenhuma das partes.
RC > Hoje os jornais vivem dias ainda mais difíceis do que quando era diretor d’A Voz de Alcobaça?
BM > Sim, sem dúvida. Como disse acabou a obrigatoriedade de muitas das publicações oficiais e, com isso, foi-se uma boa parte das receitas de todos os jornais. E os jornais regionais sofreram ainda mais. Se, em 2011, quando A Voz de Alcobaça encerrou os jornais atravessavam um mau bocado, hoje não deve estar melhor. E, à semelhança do que já disse, os jornais continuam a ter um papel preponderante nas comunidades e hoje o papel da imprensa é, simultaneamente, mais difícil mas mais importante.
Os jornais de Alcobaça não são concorrenciais mas sim complementares. E concordo com isso. O jornalismo é da maior importância que se faça e se continue a fazer
RC > Recorda o jornalismo durante o tempo do Estado Novo e da censura?
BM > Esses tempos foram muito curiosos e difíceis porque, de facto, as provas dos jornais tinham de passar pelo crivo da censura, ou do lápis azul, como ficou conhecido. Mas acontece que os agentes da PIDE de Leiria confiavam nos diretores e a coisa acabava quase sempre por correr bem. Por exemplo, O Alcoa quase nem passava na censura porque havia uma certa confiança em quem o dirigia. Mas uma vez fizemos uma edição especial sobre a Feira de São Bernardo, com muitos conteúdos sobre os jovens, a cultura e o desporto, que teve de ir a Leiria para ser aprovada pela PIDE.
RC > Parafraseando-o, teve uma vida muito “atribulada”, também muito pautada pelo associativismo. Considera que atualmente falta dinamismo às coletividades?
BM > Nos meus tempos de jovens organizávamos muitas coisas. Lembro-me de uma comissão de cultura e desporto organizar uma série de atividades durante a Feira de São Bernardo, nos inícios da década de 1970, se a memória não me falha. Ainda a feira era onde hoje é o Mercado Municipal e, em conjunto com uma malta, fizemos muitas atividades culturais. Essas atividades não existiam na cidade mas, hoje em dia, felizmente são proporcionadas por algumas instituições e coletividades de desporto e cultura. Costumo ouvir, muitas vezes, que hoje em dia não acontece nada, que nunca se passa nada mas a verdade é que não é bem assim. Mas é preciso fazer mais.