Santiago Nogueira tem 11 anos e é o anjo do Círio 2022. É ele que vai dar o mote para o arranque da manifestação popular, que junta centenas de pessoas na lenta viagem de Pataias a Paredes da Vitória, a 15 de agosto.
Este conteúdo é apenas para assinantes
O Círio, ou o tributo a Nossa Senhora da Vitória, que acontece todos os anos na mesma data, marca o ritmo das festas mais importantes em Pataias. O ensaio do anjo, que entoa loas no dia da procissão, começa meses antes, numa tradição bem antiga, com origens que remontam, pelo menos, ao século XVI.
Vila fundada por D. Dinis e importante porto marítimo durante a Idade Média, Paredes entrou, no final do século XV, em decadência devido ao assoreamento e posterior migração da população para a Pederneira e para Pataias. A população pataiense, “que até 1536 se deslocava a Paredes da Vitória para as suas práticas religiosas, no sentido de devoção e agradecimento, ficou com o dever de realizar anualmente uma romaria à Nossa Senhora da Vitória, protetora dos navegantes”, como explica o historiador Tiago Inácio.
Sem conhecer bem o peso da história, o pequeno Santiago já tem várias horas de ensaio para a sua participação no Círio. Santiago e os meninos da freguesia que o antecederam naquele papel nos últimos anos são ensaiados por Hugo Ribeiro, hoje com 49 anos e também ele anjo, quando tinha 8 anos.
A preparação começa cerca de dois meses antes da data. “Ensaiamos todos os dias a partir do momento em que acaba a escola”, conta o ensaiador, que assumiu a função há cinco anos. As loas são difíceis, não apenas pelas 16 quadras e os diferentes 64 versos, mas também pela dificuldade de pronunciar algumas palavras como “aurifulgente” (que significa que cintila como o ouro), a que se junta a entoação dos versos numa espécie de lengalenga cantada. “É preciso introduzir as palavras lentamente”, explica Hugo Ribeiro. Para dificultar a tarefa, o anjo canta as loas montado a cavalo e é em cima do animal que percorre todo o trajeto da procissão.
O anjo tem quatro conjuntos de versos, que entoa em quatro momentos: na partida de Pataias, na chegada a Paredes da Vitória, na partida da praia e na chegada a Pataias. Pelo meio há missa na Capela das Paredes e o almoço campestre, que junta centenas de pessoas nos pinhais em redor do monumento secular, mostrando que o 15 de agosto é, sobretudo, uma festa do povo.
Hugo Ribeiro herdou a tarefa, de ensaiar o anjo, de Rui Coutinho, que foi ensaiador durante cerca de 20 anos. Também ele herdou o papel do pai, António da Conceição Coutinho, que, curiosamente, ensaiou Hugo há quatro décadas. “O anjo entoa as loas sempre voltado para a igreja, com a juíza do lado direito, o juiz do lado esquerdo e os lanceiros atrás”, descreve Rui Coutinho, que se lembra bem quando em vez de cavalos eram burros e muitas vezes “corria mal”. Chegou a levar coices dos animais e nunca se esquece do primeiro. “Levei um coice da égua da juíza no dia em que fui anjo”, conta o pataiense.
Tanto Rui como Hugo conhecem as dificuldades de ensaiar crianças. “Já aconteceu ter de ensaiar um miúdo de 7 anos que mal sabia ler”, recorda Rui, que há décadas chegou a gravar uma cassete com as loas para o anjo ensaiar nas férias no Algarve.
Santiago Nogueira tem a lição bem estudada, mas ainda falta o treino de entoar montado num cavalo e com o adereço: o lenço branco que é agitado de acordo com os versos. Certo é que a 15 de agosto voltará a cumprir-se a tradição que só a pandemia conseguiu interromper.