Na Martingança não há quem não conheça a “Maria da Fontinha”. E as razões são verdadeiramente peculiares. Durante uma década e meia, Maria Lúcia Ribeiro percorreu aquela localidade de bicicleta a vender leite, porta a porta, para ajudar a sustentar as filhas nos estudos. Aos 95 anos continua a “trabalhar” no seu quintal, onde tem uma pequena horta, um “jardim botânico” e alguns animais de criação.
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A vida não era fácil e havia duas filhas pequenas para alimentar. “Maria da Fontinha” não tinha leite materno para lhes dar, mas depressa arranjou uma solução. “Criei as minhas filhas com leite de vaca. Ia todos os dias a uma senhora que tinha vacas e ela guardava o leite de uma vaca para eu dar às minhas filhas”, contou a martingancense, que trabalhava horas a fio no campo. O que “Maria da Fontinha”, como é conhecida na Martingança, não sabia é que viria a fazer do leite de vaca o seu “ganha-pão” para permitir que as filhas continuassem a estudar.
O dinheiro não sobejava e o emprego do marido, numa empresa da Marinha Grande, não era suficiente. Foi então que decidiram comprar… uma vaca. “Levantava-me às 5 da manhã, ia tirar o leite às vacas, agarrava na bicicleta [que guarda religiosamente e que fez questão de estar na fotografia do REGIÃO DE CISTER], metia as latas do leite nos ceirões – vocês não devem saber o que é isso – e lá ia vender o leite porta em porta antes das pessoas irem trabalhar”, lembrou a nonagenária, que aprendeu a andar de bicicleta propositadamente para poder transportar o leite porta a porta. O negócio corria de feição, o que motivou o casal a comprar mais uma vaca. “Uma vaca já não chegava porque já tinha muitos fregueses para vender o leite”, contextualizou.
Chegou a ter três vacas leiteiras, mas a venda de porta em porta acabaria por ser proibida. “Veio lá uma lei – não sei que lei é que veio – e não podia andar de porta em porta. Então deixei de o fazer”, lamentou a martingancense, revelando que, a partir de então, os “fregueses”, como tratava os clientes, passaram a ir buscar o leite a sua casa.
Da infância, recorda o tempo em que a mãe a tirou da 3.ª classe para tomar conta do irmão 11 anos mais novo ou quando ia de burra, até Alcaria, com a mãe, para levar o farnel e a roupa a um primo que era pároco naquela localidade do concelho de Porto de Mós. Além disso, a segunda mais velha de quatro irmãos lembra-se bem quando ia “a cavalo na burra” até Alcobaça para ir buscar um alqueire (vulgo quilo) de farinha para coser a broa. “Íamos todas as semanas buscar. A minha mãe cozia a broa, mas eles também amanhavam as nossas galinhas, coelhos, porcos…”, recordou “Maria da Fontinha”, garantindo que nunca lhe faltou comida em casa. “A minha família nunca passou gome. nem eu passei fome no tempo da guerra. O comandante dizia que nos livrava da fome, mas não nos livrava da guerra. Graças a Deus nunca passámos por essas dificuldades”, atirou a nonagenária, relembrando os tempos em que a labora era na fazenda, a semear a erva, o centeio…. “Amanhávamos terras e semeávamos essas sementes. Depois apanhávamos para secar e assim tínhamos comida para as vacas.
Trabalhámos sempre na agricultura. A semear milho, feijões, batatas, abóboras, tínhamos tudo, tudo, tudo”, adiantou a mulher, com a voz nostálgica do tempo em que, com o marido, trabalhava no campo.
Mais difícil foi quando o viu partir. Há 11 anos. Conheceram-se nas festas populares da Martingança e, garante “Maria da Fontinha”, que assumiu nunca ter sido namoradeira, foi amor para a vida toda. “Ficar sem marido foi a pior coisa que vivi. Dávamo-nos muito bem. Eu casei com 22 e ele tinha 24, ainda estivemos uns anos bons. Ele morreu com 85. Era o meu companheiro e o amor da minha vida”, confessou a mulher vestida de preto, desvendando uma história que nunca antes tinha contado. Antigamente, ainda “catraios”, os casais namoravam à porta de casa das raparigas, “não era como agora”. Certo dia, a mãe chamou-a para que voltasse para dentro de casa, mas… o relógio andava e não era correspondida: “Agarrou num pau para me vir bater, mas o meu marido agarrou o pau e disse ‘não lhe toca’”, relatou Maria Lúcia, enquanto olhava para a filha e para o genro. Afinal, “Maria da Fontinha”, apesar da vida dedicada ao trabalho, acabara por viver uma verdadeira história de amor, da qual já resultaram duas filhas, quatro netas, três bisnetas e um bisneto.
“Casinha” e família são cruciais para chegar aos 100
Atingir a bonita idade dos 100 anos é um desejo de “Maria da Fontinha”, mas para alcançar o século de vida há coisas de que não abdica. “Gostava de chegar aos 100 anos, mas da maneira que estou agora. Se tivesse de ir para o lar, isso não, gosto de estar em minha casa”, frisou a nonagenária. Ela que diz ser das únicas martingancenses daquela idade a residir na habitação própria. “Só estou bem na minha casa”, sublinhou.
Ainda que o almoço seja sempre em casa das filhas (vão alternando), é na sua casa que passa o dia, na companhia dos quatro gatos, da cadela – a sua “princesa” (de nome também) –, dos pintainhos, das galinhas, dos coelhos e do pequeno “jardim botânico”. “Tenho de apanhar o pasto para lhes dar e tratar das minhas flores”, enumerou, dando conta de que, pelas 10 horas, bebe o seu café e que, depois disso, mete mãos ao trabalho.
Mas para esta jovialidade – a própria afirma não parecer a idade que efetivamente tem –, muito contribui a família. “Tenho duas filhas que são excelentes para mim, tenho quatro netas que também me fazem tudo o que for preciso, e tenho três bisnetas e um bisneto, o meu genro e os maridos das minhas netas”, elencou. “É a minha consolação. E são tudo para mim. Fazem-me tudo e levam-me para todo o lado”, contou “Maria da Fontinha”, que, ao contrário do que acontece normalmente nas gerações mais antigas, chegou a viajar muito: foi a Espanha, a França, à Tunísia, à Madeira e aos Açores. Este último destino, frisou a martingancense, era o local onde gostava de voltar brevemente, pois tem lá dois sobrinhos e foi lá que comemorou os 90 anos de vida.
E nem os 12 comprimidos que toma diariamente (para o coração, para a coluna e sabe “lá mais o quê”) lhe metem medo. Prova disso é o facto de continuar a fazer as filhós e o café d’avó nas comemorações do São João na Martingança. Foi uma das fundadoras e ainda ajuda: “No ano passado ainda lá estava a fazer o café. E este ano, se me disserem alguma coisa, também lá vou”, confirmou Maria Lúcia Ribeiro. Um retrato perfeito do ditado popular que afirma que a idade é… somente um número.