“A tua mãe devia ter vergonha do filho que tem”. “És um ladrão”. “Nem apitar sabes, ó animal…”. “Nem na tua mulher mandas, quanto mais em 22 homens”. “Quanto é que te pagaram para estares a roubar? Vendido, não vales nada!”. “Só sabes é dar pau”. “Volta para a barraca”. “Levanta-te, pá. Não sejas princesa”. “Não vales nada, nem qualidade tens para a distritaleira”. “O teu lugar é na cozinha”. Poderíamos prosseguir. Poderíamos ir mais longe nas ofensas e injúrias que se ouvem, fim de semana após fim de semana, nos recintos desportivos, nos mais diversos contextos.
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Durante a última temporada, o REGIÃO DE CISTER registou expressões e comentários que ouviu durante as partidas. É certo que o cenário não se limita à região, mas a reflexão que daí emerge ilustra bem o que acontece regularmente no mundo do desporto, que se quer mágico e inspirador, mas que precisa de ser respeitado.
Guilherme Faustino tem 16 anos e é capitão dos juvenis do Ginásio. Joga futebol há uma década. Ouviu de tudo um pouco. Afirmou nunca ter sido o destinatário de nenhuma ofensa, mas também confessou ter assistido a insultos a colegas. “Que estão a ser porcos, que somos filhos da p****, parvalhões, mal-educados…”, elencou. Garante que os insultos não lhe afetam porque está concentrado no jogo e “desligado” da bancada, mas reconhece o problema: “As pessoas pensam que estão a ser prejudicadas e depois descarregam em cima dos jogadores e treinadores adversários. Dos árbitros…”, sintetiza. E isso tem impactos. “Há jogadores que sofrem mais do que outros, mas no caso de alguns atletas prejudica muito”, considerou.
Apesar de reconhecer também já ter agido de “cabeça quente”, Guilherme Faustino sabe que não é correto. “No futebol não existe maneira de corrigir isso, mesmo dando palestras para os pais serem melhores adeptos e esse tipo de iniciativas. Vão sempre existir essas bocas”, lamentou. Daí sublinhar a necessidade de melhorar comportamentos. “Deve haver mais respeito pelos árbitros. Devemos respeitar mais a autoridade do campo e daí já existir aquela regra de apenas o capitão falar com o árbitro. É uma boa solução para haver menos distúrbios dentro de campo”, disse. Por isso, deixa um apelo: “Que respeitemos mais para haver mais futebol. Aproveitem o que estão a ver em vez de estarem a mandar bocas. Mais futebol e desporto no geral e menos ofensas”, atirou. “Se crescemos a ouvir os pais a criticarem os jogadores, quando estivermos do lado de lá, vamos fazer mesmo e vai ser sempre um círculo vicioso”, acrescentou ainda, elencando que este seria um dos temas que colocaria no topo das prioridades se questionado sobre o que deveria mudar no futebol.
Passámos a bola a Lara Santos. Recebeu-a com a inexperiência dos 13 anos, mas com astúcia e capacidade de liderança, que lhe permitem ser a capitã da equipa de sub-15 feminina dos alcobacenses. Tem um percurso de meia década dentro de campo e das coisas que menos gosta de ouvir das bancadas é quando estão a criticar algo. “Como ainda somos novas, não dizem propriamente asneiras e reconhecem que ainda temos 13 anos e estamos a evoluir, mas por vezes criticam alguns lances”, assinalou. Os insultos que ouve é nos jogos dos seniores. “Insultam muito os árbitros apenas porque erram um lance. Chamam-lhe palhaço, que precisa de óculos, esse tipo de coisas…”, exemplificou. “Não faz sentido ainda existirem estas faltas de respeito. Jogadores e árbitros erram e isso faz parte do futebol. Ninguém tem de criticar ou ofender ninguém”, sublinhou , afirmando que os “atores” em cena – leia-se os intervenientes dentro de campo – também devem mudar a sua postura. “Há coisas que também temos de melhorar dentro de campo”, notou a jovem craque. A mensagem deixada é clara e para todos os que são agentes desportivos (jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, adeptos, comunicação social). “Temos de saber colocar-nos no lugar dos outros e não pensar só em nós. Se os adeptos estivessem a jogar também não gostariam de ver os filhos, familiares ou amigos a serem insultados”, nota.
Abordar a temática exige também um olhar atento sobre os árbitros e árbitras que, semana após semana, são vítimas de injúrias. “Há modalidades em que o árbitro tem uma figura quase inquestionável, mas existem outras, sobretudo as mais comuns, em que tal não acontece. Não podemos mudar isso, mas numa fase inicial de carreira acaba por ter muito impacto”, analisou Cristina Vicente, que hoje apita duelos dos principais escalões nacionais de futsal e futebol de praia. Mas, tal como aconteceu com a beneditense, cuja carreira tem seguido os caminhos mais comuns de consolidação, o impacto vai desvanecendo-se com a experiência. “No início questionava muitas vezes se a minha prestação tinha sido assim tão má, levava a crítica a título pessoal, mas, com o tempo, aprendi a gerir esse tipo de situações e a perceber que é mais uma questão ‘cultural do mundo do desporto’ do que pessoal”, analisou ao REGIÃO DE CISTER. É, por isso, que há jogos em que prefere que a família não esteja presente, pois, por conhecer o contexto e a atmosfera de alguns encontros, protege os familiares de ouvirem injúrias de que não gostariam. “É mais difícil para os meus pais do que para mim. São momentos em que as pessoas acham que podem dizer e criticar tudo sem limites”, justificou a árbitra, notando, ainda assim, que não considera que, por isso, sejam “pessoas maldosas”. “É o fervor do desporto e da competitividade”, sustentou. “Que a crítica seja construtiva e não destrutiva”, disse. Os casos em que terá sido alvo da insatisfação dos diversos agentes desportivos estão “esquecidos”, mas a missão continua a ser diária. Até porque, sendo professora de Educação Física, lida com os desportistas das gerações vindouras. “Tento também ter esse papel de educar para a adoção de comportamentos mais corretos nas próximas gerações”, sublinhou Cristina Vicente, reafirmando a necessidade de estratégias pedagógicas para alcançar o sucesso esperado. “O cartão branco, que premeia atitudes, é um bom exemplo”, salientou.
A mesma postura é adotada pelo técnico do HC Turquel. “Exigimos respeito pelo próximo. Com os atletas fazemos um trabalho de controlo emocional, pelo lado afetivo, dando a conhecer os adversários e árbitros e, com esta abordagem de proximidade, tentamos controlar comportamentos”, afiançou André Luís, também professor de Educação Física no Externato Cooperativo da Benedita. “Na escola passa muito por promover ações de respeito e de ‘não atropelo’ pelos outros e pelas suas características individuais, apelando à inclusão”, notou. Com uma vida de décadas de ligação ao desporto, o antigo capitão dos Brutos dos Queixos aponta a “educação” como ponto fundamental. “As pessoas, principalmente no contexto desportivo, transformam-se, têm ações irresponsáveis e descarregam frustrações no recinto desportivo, quase sempre por desinformação e por questões culturais, ou porque viram outros fazer ou porque é comum fazer-se”, advertiu, salientando que “demorará tempo”, mas que virá com o “exemplo”.
Mesmo que nem sempre tenha sido alvo dos melhores comentários. “Numa partida disputada em Paço de Arcos, depois de uma sequência de maus resultados, e em que ao longo de todo o jogo vi os chamados ‘lenços brancos’, no final, uma das adeptas que tinha mostrado os lenços, insultou-me cara a cara e em público, dizendo também que tinha de sair e que não percebia nada daquilo”, revelou, sublinhando que a situação deixou-o “completamente vulnerável”. “Saí do local na hora e aquela situação marca-me até hoje”, admitiu André Luís. E estes comportamentos podem ter impactos significativos. “Muitas vezes as vítimas são pessoas que trabalham muito para poderem fazer o melhor de si, grande parte delas têm bom íntimo e estão no desporto para pugnar pela verdade desportiva e por tudo o que está associado a isso. Portanto é fácil prever que tem um impacto psicológico muito grande”, lamentou, acreditando que existem “menos casos”, mas que, em simultâneo, também existe “menos tolerância”.
As razões são mais do que suficientes para reclamar a urgência de melhorar a atitude perante o desporto. É uma missão de todos os que o vivem com uma paixão inigualável.