Depois de um jantar servido no hotel Concha, em São Martinho do Porto, em que o ingrediente principal foi a castanha, o chef Ricardo Raimundo sentou-se à mesa para falar de si, da moda dos chefs e da evolução da área da cozinha, sem nunca largar a jaleca e o chapéu.
Foi a avó materna e a mãe que lhe adoçaram a paixão pela cozinha. Iniciou a formação de cozinha e pastelaria em 1996 na Escola Profissional de Ourém, tendo-se licenciado em Produção Alimentar em Restauração na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Já passou por países como Suíça, Brasil e Inglaterra, onde chegou a ter uma experiência num restaurante com uma estrela Michelin. O chef, que se tem distinguido no concurso Chefe Cozinheiro do Ano, é formador na Escola de Hotelaria de Fátima. O chef, que apesar de ser natural de Caldas da Rainha, passa grande parte do tempo na Benedita, dá primazia aos produtos da região, promovendo a gastronomia do Oeste.
Depois de um jantar servido no hotel Concha, em São Martinho do Porto, em que o ingrediente principal foi a castanha, o chef Ricardo Raimundo sentou-se à mesa para falar de si, da moda dos chefs e da evolução da área da cozinha, sem nunca largar a jaleca e o chapéu.
REGIÃO DE CISTER (RC) > Quem é o chef Ricardo Raimundo?
RICARDO RAIMUNDO (RR) > Sou natural de Caldas da Rainha, mas a minha vida foi passada entre a Benedita, Alcobaça e Caldas da Rainha. Grande parte do que faço e tenho tem a ver com a educação e a formação que os meus pais me deram: são pessoas simples e humildes que lutaram muito na vida. A minha avó materna e a minha mãe passaram-me a paixão pela cozinha. Valorizo muito os produtos da região, tantas vezes esquecidos. Sou solteiro e estou perto dos 40 anos… Já fui a alguns países, uma das coisas boas que a profissão nos dá. Gosto de desafios, tenho participado em algumas provas, principalmente porque as encaro como um desafio contra mim próprio e não contra ninguém.
Uma pessoa sozinha na cozinha, mesmo que seja o melhor chef do mundo, não consegue fazer nada.
RC > Mas os resultados desses concursos são importantes no reconhecimento da classe…
RR > Sim, em primeiro lugar porque trabalhamos muito em equipa. Uma pessoa sozinha na cozinha, mesmo que seja o melhor chef do mundo, não consegue fazer nada. As equipas são compostas por pessoas muito diferentes e temos de perceber as características e a personalidade de cada uma para as tentar encaixar no que são melhores a fazer. Na competição dependemos muitos de nós próprios. No caso do concurso “Chef Cozinheiro do Ano”, nos últimos dois anos nem conhecemos o nosso ajudante, são pessoas que nos são atribuídas, e por isso estamos cada vez mais por nossa conta. É uma competição, em que tal como outra qualquer, temos de estar muito bem equilibrados emocional e psicologicamente. Não é só ter a técnica e o conhecimento. Muitas vezes temos de prepapar o trabalho de um ano para o outro ou até mais e isso envolve muitos sacrifícios. Considero que se trata de uma competição em que nem tanto a ver com o lugar em que ficamos, mas que tem a ver com a evolução e a forma como estamos preparados para o desafio. É um grande teste, mas o que nós somos não se resume só aquilo. Há pessoas muito boas, com estrelas Michelin, que nunca chegaram à final e outras que tem boas classificações e têm um dia a dia numa cozinha tranquila. A primeira coisa que quem concorre deve perceber é que está a submeter-se a uma avaliação. É muito fácil julgar quando estamos do lado de fora, mas quando as pessoas ganham coragem ou querem participar, têm de saber que vão ser submetidas a uma avalição. E sei que há pessoas que têm medo ou não estão dispostas a isso.
RC > Para o público em geral como se explica a diferença entre chef com “e” e sem “e”?
RR > O mais importante é distinguir na questão da escrita. Em Portugal o “chef” é “chefe”, mas a utilização do “chef” tem a ver muito com a internacionalização. A palavra em inglês e em francês escreve-se “chef” e muitas vezes a sua utilização tem a ver com o marketing e a forma como algumas empresas e entidades vão fazer do chefe um chef. Mas isso não é o mais importante. Para mim é uma questão de uma letra a mais ou a menos.
a cozinha hoje não é só cozinhar, já é ciência, informática, tecnologia… são muitas áreas que se cruzam
RC > Mas o certo é que passámos de um país de cozinheiros para um país de chef’s…
RR > Hoje em dia a televisão e outros eventos têm dado protagonismo a isso. Há um aspeto muito positivo disso: é pedagógico e as pessoas hoje em dia aprendem a cozinhar na televisão e no Youtube. Um aspeto menos positivo tem a ver com o mediatismo que se tem criado à volta da profissão. A televisão acaba por ser muita ficção, não só nestes programas, e é preciso as pessoas filtrarem porque depois no dia a dia não é assim tão glamoroso. É uma profissão que, à semelhança de outras, os fins de semana envolvem mais dedicação do que durante a semana. Se a pessoa não gostar, o tempo acaba por ser decisivo na escolha em ficar nesta área ou não. Depois a cozinha hoje não é só cozinhar, já é ciência, informática, tecnologia… são muitas áreas que se cruzam. Hoje temos equipamento na cozinha que apenas era usado em laboratório e isso seria impensável há duas décadas. É um trabalho menos pesado do que foi há três décadas e também já existe mais respeito. As pessoas têm formação, preocupam-se em estudar e saber a razão pela qual as coisas são feitas. Todo o conjunto da cozinha mudou, até a farda.
RC > Mas hoje em dia cozinha-se melhor do que há 40 ou 50 anos?
RR > Não posso dizer que cozinhamos melhor ou pior, mas cozinhamos de forma diferente. Os produtos são diferentes, lidamos com a industrialização e isso é uma vantagem, no sentido em que temos tudo perto e acessível. Mas, ao mesmo tempo, há coisas que se vão perdendo. Temos de andar no meio termo. O consumidor também é diferente. As pessoas perdem pouco tempo a cozinhar, as mulheres trabalham mais horas e quando as pessoas dizem que antigamente a comida sabia melhor, há uma série de fatores que explicam isso: o calor já não é natural, as coisas têm de ser feitas em 10 ou 15 minutos… A comida hoje em dia envolve os sentidos todos. Há uma parte muito emocional, a comida está ligada a datas e/ou acontecimentos que marcam a nossa vida.
Durante muitos anos ia-se ao restaurante por uma necessidade, hoje as pessoas já comem no trabalho para economizar e juntam dinheiro para ir comer a um restaurante com estrelas Michelin.
RC > O facto de as pessoas terem menos tempo para cozinhar leva-as mais aos restaurantes?
RR > Também. Está a acontecer em Portugal o que tem acontecido noutros países, em que as pessoas vão menos vezes ao restaurante mas quando vão têm de ter uma razão e gostam de desfrutar do restaurante. Durante muitos anos ia-se ao restaurante por uma necessidade, hoje as pessoas já comem no trabalho para economizar e juntam dinheiro para ir comer a um restaurante com estrelas Michelin. Há uma série de situações em que as pessoas ponderam se vale a pena ou não aquela experiência.
Temos uma gastronomia muito forte e produtos muito bons num país tão pequeno e por vezes isso também gera muita confusão de comidas
RC > Ser chef é hoje em dia uma profissão glamorosa?
RR > Tive a vantagem ou desvantagem de ter nascido nesta área. Fui sempre habituado a não haver distinção entre a semana e o fim de semana. É importante que as pessoas percebam que têm de gostar do que fazem. Muitas vezes entram na cozinha com uma ideia, mas com o tempo percebem que não era bem aquilo que queriam. Por muita tecnologia que exista, a cozinha é muito humana e isso faz-se sentir na comida: se o chef está bem a comida tem um determinado paladar, se o chef estiver num dia “não” algum efeito poderá ter na comida. Temos uma gastronomia muito forte e produtos muito bons num país tão pequeno e por vezes isso também gera muita confusão de comidas – e contra mim falo, porque há uns anos também fazia pratos mais estrangeiros. Estamos ao lado de produtos muito bons e valorizamos coisas que não nos dizem nada. O que vai prevalecer sempre é o sabor da comida e o momento em que estamos a confecionar e a comer.
RC > Será que os empresários hoteleiros também não deveriam ser alvo de formação para poder aceitar essas novas abordagens? Não há aqui um certo desfasamento?
RR > É difícil fazer o equilíbrio entre o consumidor, os hotéis/cargos de chefia e as equipas e as pessoas que saem da escola. Entra-se com 14/15 anos para esta área, muito deles nem sabem bem o que querem. Da minha experiência há sempre o problema de haver muita gente a formar-se nesta área. Há uma turma de 20 formandos, mas no final, a laborar, passados alguns anos, já não são assim tantos. Há outro problema: as escolas têm de formar 20 ou 30 pessoas em simultâneo, que estejam preparadas para um restaurante com estrelas Michelin, um restaurante de cozinha tradicional ou um refeitório. Com o aumento do turismo e com os estabelecimentos que têm aberto, o défice de pessoas especializadas agravou-se. Sente-se muito essa falta de especialização nesta área porque estamos numa fase de geração de mudança. Os meus pais fizeram por iniciativa, mas sem acesso à formação e à tecnologia.
RC > O boom do ensino profissional, nomeadamente na área da cozinha, também facilitou o acesso à profissão?
RR > Sou um dos alunos que entrou no primeiro curso de cozinha que existiu em 1996. A escola profissional era muito vista como a alternativa para as pessoas que não gostavam de estudar, que tinham menos capacidades e que depois do 12.º ano tinham uma profissão. Ainda há essa vertente, mas tem mais a ver com as características da pessoa. Estar na Europa tem permitido aos alunos sair e conhecer novas realidades. Muitos deles com 18 anos podem ir a outros países e na sala de aula não se ensina isso. O ensino acaba por despoletar o interesse nesta área. Na próxima década, vai dar-se com a pastelaria o que está a acontecer com a cozinha. A base é conventual, mas temos muito mais além disso. Em 2015 o facto de ter ganho um prémio criatividade na sobremesa foi uma surpresa, porque supostamente é o ponto fraco do concurso, dado que somos cozinheiros e não somos tão fortes em pastelaria. Temos de ser completos, principalmente nos restaurantes.
RC > Como é ser chef sem um restaurante próprio?
RR > Essa é a pergunta mais difícil. Tem a ver com os objetivos pessoais e a personalidade de cada um, mas também com a área mais difícil da cozinha, que é a gestão. É uma das coisas que muitos chefs gostam ter, outros sonham ter, alguns já têm, outros tiveram e não era bem aquilo que pensavam. Muitas vezes o que fazemos nem sempre é o que os clientes procuram e depois há muitos fatores que não conseguimos controlar, como a localização. Mas ter o próprio espaço deve ser um dos sonhos de qualquer chef. Contudo, também se tem dado um protagonismo, às vezes, um bocadinho excêntrico.
RC > Mas também é um sonho do chef?
RR > Sim, claro. O que para mim é difícil é a rotina e é uma das coisas que me leva a ponderar investir. Tive um espaço durante cinco anos e chegou uma altura em que era demasiado previsível. Sabia os pratos que os clientes iam comer e deixou de ser motivador. Gosto de conhecer outras pessoas, porque acabamos por aprender uns com os outros.
RC > Para um chef ter uma estrela Michelin é como ganhar o campeonato da Europa?
RR > Muitos lutam por isso e é o topo da carreira e do reconhecimento daquilo que a pessoa e a equipa dela fazem. Mas o mais importante é não só ter esse objetivo, mas fazer com que seja moderado. Há pessoas que ficam obcecadas e isso acaba por influenciar a equipa e a família. Por outro lado, há pessoas em que lhes é atribuído esse reconhecimento e elas dizem que não querem porque estão muito bem assim e não precisam de reconhecimentos. Mas, sempre que é atribuída uma estrela Michelin, há uma mudança do dia para a noite. As pessoas procuram e vão.