Em cima do palco, os homens apresentam-se de suspensórios, as mulheres levam uma bandolete na cabeça. Todos vestem uma peça branca e um sorriso de orelha a orelha. Uns trazem cavaquinhos, mas também há quem leve uma pandeireta, um bombo, um cajón e um tamborim. Meninas e meninos, senhoras e senhoras, convosco o grupo de cavaquinhos e percussão do Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) do polo de Porto de Mós da Cooperativa de Ensino e Reabilitação de Crianças Inadaptadas (Cercilei).
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Para os leitores do REGIÃO DE CISTER mais atentos, alguns rostos deste grupo de 14 instrumentistas são familiares. Já foram os protagonistas de uma história contada nas páginas deste semanário, em fevereiro de 2015, a propósito do projeto “Sons Com(n)Sentidos”, criado pela ABA – Banda de Alcobaça, Associação de Artes, para ser direcionado aos utentes de Centros de Educação Especial, com a valência de CAO (Centro de Atividades Ocupacionais), agora designada de CACI. “Inicialmente a atividade tinha contextos terapêuticos, tendo evoluído de forma natural e orgânica para uma atividade de usufruto da música enquanto atividade cultural, ou seja, temos atualmente um grupo de pessoas com deficiência que usufrui da música como atividade artística e cultural, tendo os pressupostos exclusivamente terapêuticos passado para segundo plano”, sintetiza Dalila Vicente, coordenadora dos Projetos para a Comunidade da ABA e a professora que iniciou as sessões dos “Sons Com(n)Sentidos”. “O projeto evoluiu para outro caminho, aquele caminho era ótimo e foi ótimo enquanto durou, mas houve a necessidade também de traçar outro caminho”, acrescenta Ricardo Vinagre, psicólogo e coordenador da atividade da Cercilei.
Na verdade, foi um dos utentes da instituição que participava nas sessões terapêuticas que impulsionou a criação deste grupo musical. “O Miguel, que tem trissomia 21 e uma competência musical muito desenvolvida – chegou a fazer composições ao piano – tinha assistido a uma atuação de uma orquestra que tinha um cavaquinho e acabou por motivar os colegas para formar um grupo instrumental de cavaquinhos”, conta Dalila Vicente. “As duas instituições sempre estiveram abertas para isso, havia a necessidade de adquirir os cavaquinhos e reunimos com as famílias para ajudar a adquirir os instrumentos e em 2017 dá-se esta transformação do projeto”, conta a responsável.
As sessões semanais, que decorrem às sextas-feiras de manhã nas instalações da Academia de Música de Alcobaça, foram substituídas pelos ensaios do grupo, agora sob a batuta de Pedro Barreiro. “Nunca tinha tocado cavaquinho, era apenas autodidata na guitarra e clarinetista de formação e, além disso, nunca tinha trabalhado com este público”, elenca o maestro, que quando foi desafiado por Dalila Vicente para coordenar aquele grupo musical adquiriu “o mínimo de conhecimento para conseguir definir algumas ideias para trabalhar com o grupo” . “Tem sido uma aprendizagem para todos, ninguém esperava chegar onde chegámos, hoje tenho uma visão muito diferente daquela que tinha inicialmente”, confessa Pedro Barreiro, para quem “a música pode chegar a todos, independentemente da capacidade física ou mental de cada um”. “O que pode acontecer é uma adaptação musical às patologias e dificuldades dos alunos; por exemplo, para alguns o cavaquinho não estava a funcionar e por isso introduziram-se outros instrumentos de percussão”. “A frustração estava a ser maior do que a satisfação e não era isso que se pretendia e que se pretende”, assume o maestro. Para Pedro Barreiro, não há qualquer diferença entre ser maestro deste grupo ou de outro qualquer. “Os problemas que tenho com os alunos da Cercilei são os mesmos que tenho com outros alunos, não estudam em casa e esse é o problema de qualquer aluno de música”, argumenta, entre risos.
“Raramente neste País temos a pessoa com deficiência a usufruir da música como atividade artística, normalmente há um fim terapêutico associado e o que está aqui em destaque é a parte artística e não a terapêutica”, sublinha Dalila Vicente . Apesar de, acrescenta o maestro, “os objetivos musicais nunca terem sido definidos, a fasquia era muito baixa”. Mas, surpreendentemente, e “puxando por eles”, o projeto foi crescendo e evoluindo. “Havia já acompanhamento rítmico, harmonia, mas faltava uma linha melódica, porque a música só começa quando acaba a rádio”, conta o clarinetista, que tem apostado num portefólio de música tradicional portuguesa com este grupo. Nas últimas atuações, já não houve rádio, houve vozes, ritmos e “Sons Com(n)Sentidos” para usufruto de todos. Normalmente, a última música a ser tocada dá pelo nome de “Somos Livres”. Não é fácil perceber o porquê de ser a preferida. Mas se dúvidas houvesse, bastaria estar atento(a) à letra: “Uma gaivota voava, voava/asas de vento/ coração de mar/ Como ela, somos livres/ somos livres de voar”.
Psicólogo aprendeu a tocar para fazer parte do grupo
Já sabe os acordes de sol, dó e fá do cavaquinho. Mas, até há bem pouco tempo, nem sabia o que era um acorde. O psicólogo Ricardo Vinagre, que assume a coordenação do grupo de cavaquinhos e percussão do Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) do polo de Porto de Mós da Cooperativa de Ensino e Reabilitação de Crianças Inadaptadas (Cercilei), fez questão de aprender a tocar cavaquinho para se sentar ao lado dos elementos do grupo.
“Estou no grupo para aprender e para destabilizar, é também esse o meu papel. O Pedro [Barreiro] é o líder da música, mas é para mim que eles olham quando o Pedro os corrige, porque em termos institucionais sou a pessoa que gere a atividade com eles”, conta o diretor técnico do CACI do polo de Porto de Mós daquela instituição social sediada em Leiria. “Esta ligação entre a música e a psicologia é ótima, se o Ricardo não se tivesse mostrado disponível para aprender a tocar cavaquinho não percebia as dificuldades dos alunos”, aponta o maestro Pedro Barreiro.
“Com este projeto, podemos trabalhar uma série de coisas com eles: em termos comportamentais, em termos de saber estar, em termos de comunicação, da gestão da frustração, da ansiedade e da motivação”, enumera Ricardo Vinagre, não poupando elogios ao maestro do grupo. “O Pedro nunca tinha trabalhado com este público e soube adequar-se. Foi com ele que o caminho foi sendo feito, desde a aprendizagem do ritmo, do cavaquinho (o que é, para que serve, as origens), dos acordes, temos vindo a ser capacitados”, afiança.
“A ideia foi sempre que não houvesse distinção entre os elementos, somos um grupo, eu tenho dificuldades como eles têm. O Miguel toca do princípio ao fim e eu tenho de me concentrar muito”, reconhece o psicólogo. “O Pedro começa a tocar, depois vem o Miguel [o elemento que revela mais capacidades artísticas musicais], depois arranco eu e a seguir vêm muitos outros e já sai dali alguma coisa”, acrescenta. É certo que “cada elemento lida com a crítica à sua maneira”, mas o “chá” é o mesmo para todos. “O Pedro está sempre a dizer-nos que precisamos de treinar em casa, não pode ser só uma vez por semana”, conta. A autonomia e a responsabilidade são valores também muito trabalhados, razão pela qual “quem falta aos ensaios não pode participar nas atuações”.