O Externato Cooperativo da Benedita (ECB) celebra 60 anos de atividade e a data comemorativa justifica, por isso, um regresso ao passado. Para tal, juntámos, numa das salas de aula da escola, uma das alunas da primeira turma, um funcionário e uma das professoras que mais tempo desempenharam funções naquela instituição de ensino. E, começando pelo início, recuemos a 1964.
Nascida e criada na Benedita, Natália Serrazina tem 71 anos e conta no “currículo” o “título” de ter sido uma das primeiras pessoas a frequentar aquela instituição de ensino. Sobram-lhe as histórias sobre os tempos ali passados, mas, em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, fez questão de trazer algumas à memória, enaltecendo todos aqueles que contribuíram para o início da história daquela instituição de ensino.
“Há 60 anos, na Benedita, estudavam os rapazes que iam para o seminário, algumas raparigas que iam para Rio Maior e outras para a Escola Técnica de Alcobaça. Mas eram pouquíssimas”, começou por contar, explicando que a “maior parte acabava a 4.ª classe e ia trabalhar”.
Em 1962, “veio o projeto de desenvolvimento comunitário para a Benedita e a freguesia mudou pouco a pouco, sendo que o Externato tem muito que ver com esse projeto”, contextualizou a ex-aluna, uma vez que a fundação da escola, que também teve momentos conturbados nos seus primórdios, viria a permitir aos “meninos e meninas da Benedita estudarem”. “Havia pessoas que já percebiam que a escola era esse tal elevador social”, considerou Natália Serrazina, esclarecendo que foi uma das pessoas que “teve a sorte” de acabar a 4.ª classe.
“Foi pelo facto de haver um grupo de pessoas que pensaram na criação de uma escola que os jovens da minha idade tivemos a oportunidade de estudar”, exacerbou a beneditense, que foi uma das alunas que ainda frequentou as aulas na antiga fábrica de navalhas, onde ainda hoje é exibida uma placa identificativa, e que realizou vários exames em Alcobaça por via de algumas “irregularidades” que afetaram os primeiros anos de existência do Externato.
“A minha geração só tem a agradecer a quem teve a ideia, aos sócios fundadores, aos pais que acreditaram que valia a pena, mesmo com um projeto a começar do zero…”, asseverou Natália Serrazina, recordando personalidades que marcaram aqueles anos iniciais. “Foi preciso partir muita pedra e acreditar que valia a pena”, salientou, reforçando a ideia de, volvidas seis décadas, “valeu mesmo a pena”. Sobre aqueles tempos diz-se “sentir muito grata” e que é por isso que, sempre que fala do Externato, fala com “emoção”, nota a antiga professora, que viu os filhos estudarem também no ECB e que verá, por certo, os netos seguirem as mesmas pisadas.
“Se pensarmos nos milhares de jovens que o Externato formou e que hoje, felizmente, estão bem na vida, é um sentimento de orgulho”, sublinhou a beneditense, deixando uma frase tão impactante quanto o impacto que o Externato Cooperativo da Benedita tem tido na comunidade da Benedita e, também, das freguesias circundantes: “o desenvolvimento comunitário foi muito importante, mas aquilo que de mais importante ficou foi a criação desta escola devido ao impacto social que teve na população desta terra”, afirmou. E não se conteve nas palavras: “é a maior obra social feita na Benedita”, acentuou Natália Serrazina, numa ideia corroborada por Manuel Malaquias, que acrescentou: “quando o Externato não funciona, a Benedita está mais parada”.
Na história da instituição, repleta de momentos marcantes – bons e maus, como em todas as histórias – há figuras que ganharam incontornável relevo no quotidiano do Externato Cooperativo da Benedita e que, mesmo após terem encerrado o capítulo da vida profissional, continuam a ser muito estimados por todos com quantos se forem cruzando dentro, e também fora, daquelas instalações.
Falamos de Manuel Malaquias, mais conhecido pelo “senhor Malaquias”. Aos 69 anos, e sempre que pode, aproveita o tempo livre da reforma para regressar a um local onde já foi muito feliz e no qual passou mais tempo do que na habitação pessoal. Afinal, foi no Externato Cooperativo da Benedita que estudou e foi também naquela instituição que começou a trabalhar na década de 70, quando ainda o estabelecimento não estava totalmente construído.
Mal sabia o beneditense que viria a tornar-se na sua “casa” profissional. “Esta escola foi mais do que uma família. Vivi mais tempo aqui do que propriamente em casa. Fazia parte de mim”, afirmou o antigo funcionário, que até se reformou há três anos, mas que continua a ter o estatuto de colaborador mais antigo da instituição de ensino. “Assim que cheguei aqui fui logo chamado por antigos colegas”, relatou o sexagenário, numa afirmação confirmada pelo REGIÃO DE CISTER aquando do trajeto até à sala de aula onde decorreu a entrevista.
O início do percurso remonta aos tempos de… estudante. “Era aluno do antigo 3.º ano dos liceus – atual 7.º ano –, e comecei a trabalhar. Por necessidades económicas, o meu pai veio ao Externato perguntar se precisavam de algum funcionário. Acabei por vir para aqui fazer uns recibos de mensalidades e laborava das 19h às 23 horas”, recordou. Durante o dia estudava e à noite trabalhava. Quando completou o ensino, o “senhor Malaquias” acabou por ir estudar para o ensino complementar, em Alcobaça, mas continuou a trabalhar, a meio tempo, no Externato. Foi assim até 25 de abril de 1974, quando terminou o 7.º ano. “Acabei por ficar no Externato a tempo inteiro. Durante mais de 50 anos assim foi”, afirmou.
Manuel Malaquias assevera que “há poucos cantos” daquele estabelecimento que não conhece. Relativamente aos alunos, o caso já muda de figura, mas apenas pelo facto de ter conhecido milhares de estudantes ao longo de mais de meio século de vida profissional ativa. “Penso que eles me conhecem todos a mim, eu é que se calhar já não os conheço a todos”, referiu, entre sorrisos, explicando que todos o “viam” na secretaria, mas “fixar tanto nome é difícil”, acrescentava.
Poucos, talvez muito poucos, são aqueles que, enquanto frequentaram o ECB, não se cruzaram com a simpatia e simplicidade de Manuel Malaquias. Até porque, como recorda, era um participante assíduo nas atividades dos alunos: “jogava à bola com eles, fazia tudo com eles, sobretudo nos primeiros 20 anos”, justificou.
Mas a ligação aos estudantes não ficava por ali. É que o beneditense – um dos impulsionadores da criação do Clube de Judo da escola há mais de quatro décadas, e que ainda hoje permanece em atividade – chegou a ir a cinco viagens de finalistas com os alunos, participando regularmente, e de espírito aberto, nas iniciativas levadas a cabo pelos alunos para os diversos projetos. “A contrapartida era ir com eles”, gracejou.
Dos intensos 50 anos, levou na despedida a “amizade criada com os alunos, com o pessoal docente e não docente”, o que referiu “já ser muito”. “Entrar aqui e sentir-me bem é muito bom”, notou o “senhor Malaquias”, recuando ao último dia enquanto funcionário do estabelecimento de ensino.
“Fizeram-me uma festa”, atirou, de imediato, asseverando ser um dia que recorda com muita estima. “Foi emocionante”, frisou o antigo funcionário, complementando que foi um momento para o qual se foi “preparando”, apesar de, como sublinhou, não ter sido “fácil”. “Estava a chegar a altura de descansar um bocado”, justificou.
Hoje em dia, já não desempenha funções profissionais, mas a distinção de um dos funcionários mais acarinhados do Externato Cooperativo da Benedita – e também o de mais antigo, que se torna menos relevante devido ao carinho que pelo beneditense é nutrido –, esse, já ninguém lhe tira.
Uma das professoras com mais anos de “casa” é Maria Soledade dos Santos, docente que até é natural do Sabugal, no concelho da Guarda, mas que fez (e continua a fazer, ainda que a espaços) da Benedita, e mais concretamente do Externato Cooperativo da Benedita, a sua “residência” durante mais de três décadas.
A docente, de 67 anos, já “goza” o período de reforma, mas o “amor à camisola” tem falado mais alto e a verdade é que continua a lecionar, ainda que de forma mais faseada, no Externato Cooperativo da Benedita.
“No ano passado já estava aposentada, mas tinha três turmas do 12.º ano de escolaridade”, começou por explicar, acrescentando que é “prática da casa” levar um ciclo de estudos até ao fim. “Estava a custar-me deixar o trabalho a meio com aqueles miúdos e, uma vez que não estava a ser fácil arranjar um professor para as horas que havia, acabei por aceitar ficar com a condição de não ter outro tipo de trabalhos, nomeadamente de componente não letiva e burocracia”, salientou, já depois de destacar que “ainda gosta muito de dar aulas”.
O horário acabaria por aumentar devido a uma baixa médica de uma colega, razão pela qual, mesmo já após a aposentação, a professora continua a fazer aquilo que mais gosta de fazer. Ainda que dê aulas a apenas uma turma no presente ano letivo.
“É uma coisa residual, mas que me permite estar em contacto com os miúdos, que é muito gratificante, e manter também um contacto com os colegas e a instituição, à qual estou muito grata”, frisou a docente, revelando que a “chama” de ser professora ainda permanece “acesa”, mas não esquecendo também “anos menos bons”.
“Se não tivesse este gosto não estaria aqui ainda”, atira Maria Soledade dos Santos, recuando depois ao momento em que chegou à Benedita para lecionar no Externato.
“Estudei, trabalhei e casei em Lisboa, onde estive muitos anos, mas estava a precisar de fazer um corte na minha vida. Tive um ano muito difícil e pensei que tinha de sair”, contou, já depois de revelar que julgava que “vinha passar uma ‘chuva’, que seria por dois ou três anos”. Pois bem, o “engano” foi tal que os “dois ou três anos” se tornaram… mais de 30.
A candidatura ao ECB foi realizada no início da década de 1990 e a professora de Português acabaria por ficar ali colocada, não mais saindo. “Nessa época, havia uma dinâmica e uma alegria incrível, havia 1.001 projetos que fazíamos”, recordou a docente, destacando esses como alguns momentos que perduram, e vão perdurar, na sua memória.
Os primeiros tempos revelaram-se, especialmente frutíferos, e Maria Soledade acabaria por estabilizar-se na vila. “Gostei de estar fora da grande cidade, acabei por alugar casa aqui e estabelecer amizades. Começou a fazer-me sentido estar aqui”, asseverou, contando que chegou a “concorrer” a outras escolas, mas acabaria “por desistir”.
Em 30 anos de “casa” – esta que se tornou também a da professora –, há momentos que não se esquecem: “lembro-me da camaradagem, da sala de professores, que é um sítio de convívio e de alegria, e hoje tenho antigos alunos que são amigos”. “Não são apenas ex-alunos, são amigos”, atirou.
Sobre a profissão, e comparando o ensino há 30 anos e atualmente, as diferenças, lamenta, são notórias: “Isto não é cultura do Externato, isto é a nova ortodoxia educativa que temos no País e, talvez, na União Europeia”, analisou. Já sobre a passagem pelo Externato da Benedita, onde continua a deslocar-se todas as semanas para dar aulas a uma turma do 12.º ano, a professora de Português releva “as amizades, as memórias muito gratas e o privilégio que foi ter tido condições para trabalhar”. “Dei o melhor de mim profissionalmente a esta escola, mas esta escola também me deu condições e estimulou isso”, frisou, asseverando sentir-se “realizada” pelo trajeto que tem trilhado na instituição.
O Externato da Benedita é uma instituição de grande importância para a história coletiva da freguesia da Benedita. Não só pela formação educativa que transmitiu, mas também pelo pensamento crítico que foi capaz de incutir a milhares e que, não menos vezes, tem permitido à freguesia crescer não só a nível social, como também económico.
E para esse papel tão relevante na comunidade, jamais serão esquecidos os “senhores Malaquias”, as professoras “Maria Soledades” e as alunas “Natálias”.