Terça-feira, Abril 23, 2024
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Ricardo Leão: “Há uma grande dificuldade do SNS em responder a doentes não covid”

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O urologista, que se divide entre o Hospital de Braga e a CUF, em Coimbra, põe o dedo na ferida em relação ao que se está a passar no Serviço Nacional de Saúde. O médico não poupa críticas ao Governo, defendendo uma maior proximidade entre o público e o privado.    

Quis ser economista, mas acabou por ingressar em Medicina na Universidade de Coimbra. Especializou-se em urologia, sendo atualmente coordenador da unidade de Urologia do Hospital CUF Coimbra e assistente hospitalar no Hospital de Braga. Natural da Bemposta, vive em Braga, mas frequentemente apanha o avião do Porto para Lisboa. Casou em fevereiro do ano passado com uma anestesista. Foi pai pela primeira vez há nove semanas. O também professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, de 40 anos, chegou a tocar saxofone na Banda de Alcobaça e ao lado dos The Gift. Ainda guarda o instrumento de sopro em casa, onde também tem um piano.

O urologista, que se divide entre o Hospital de Braga e a CUF, em Coimbra, põe o dedo na ferida em relação ao que se está a passar no Serviço Nacional de Saúde. O médico não poupa críticas ao Governo, defendendo uma maior proximidade entre o público e o privado.    

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REGIÃO DE CISTER (RC) > Como é que se encontra o Serviço Nacional de Saúde (SNS) neste pico da pandemia? Qual a avaliação que faz?

RICARDO LEÃO (RL) > Os portugueses sabem que o SNS responde com algumas deficiências há muito tempo. E isso faz com que a pandemia seja uma desculpa para aquilo que temos vindo a sentir. Se durante um mês só forem atendidos doentes com covid-19, e se não houvesse listas de espera, a pandemia não seria um grande problema para o SNS. Efetivamente já há listas de espera para consultas, para cirurgias, para exames… tudo agrava porque a resposta é diminuta. Por outro lado, as infraestruturas e os recursos humanos são limitados. No meu período de consulta, devo ver 19 doentes mas vejo 40. Significa que o SNS só tem funcionado graças às inúmeras horas extras das equipas médicas. O outro problema é uma total incapacidade da tutela em perceber quais são as falhas. Somos um país de fracos recursos. Quando a pandemia começou o País tinha 400 ventiladores. Há uma má comunicação relativamente à gravidade da situação e uma grande dificuldade do SNS em responder às necessidades da população sem covid. Com covid, obviamente que as coisas se agravam e muita gente vai ficar sem assistência. Não vão morrer só doentes covid, vão morrer outros doentes com falta de assistência.

RC > Estamos a pagar por erros do passado?

RL > Estamos a pagar por tudo. Estamos a pagar por uma total incapacidade da tutela em perceber quais são as reais necessidades em saúde da população. Como é que se justifica um crescimento exponencial de hospitais privados? Os médicos são contratados para serviços com base nas necessidades do serviço para a urgência. Isso é completamente um absurdo. Há muitos erros há muitos anos. As circunstâncias atuais colocam a nu as deficiências que temos. As pessoas não são robôs e quando são… geram erros. Há falta de pessoas. Há más políticas de saúde e má gestão de recursos. Há dificuldades em ter material e condições para trabalhar. A criação de centros hospitalares desmantelou outros hospitais que ficaram pouco dotados de pessoas e de material. Não é por acaso que, hoje em dia, os doentes acabam quase todos em Coimbra, Porto ou Lisboa.

“Não vão morrer só doentes covid, vão morrer outros doentes com falta de assistência”  

RC > Os hospitais vivem, efetivamente, um cenário semelhante a uma guerra?

RL > Imagine que tem um acidente de viação grave. Se for de Lisboa tem inúmeras ambulâncias para a transportar até ao hospital. Mas se perder sangue vai morrer, tenha 20 ou 80 anos. Por muito boa vontade que haja, até pode passar à frente de outras pessoas. Mas vai ser operada onde? Vai ser internada onde? Vai ser ventilada onde? Como é que não admitem operar doentes sem teste à covid-19, e bem, mas nem todos os profissionais de saúde são testados? Na eventualidade de um de nós estar doente, ainda há menos pessoas para trabalhar. Os surtos nos hospitais não são doentes que infetam doentes, são profissionais de saúde que infetam doentes. Há uma grande incompetência na gestão de tudo isto. E a mensagem que passa é fraca.

RC > Em plena pandemia, na sua especialidade, na oncologia urológica, como se gere o que é mais e menos urgente?

RL > O hospital onde trabalho conseguiu organizar-se de forma a tratar de doentes oncológicos mais urgentes. Não conseguimos tratar todos, até porque dependemos muito da anestesia e muitos anestesistas foram deslocados para a medicina intensiva. Não podemos estar a operar doentes muitos graves porque se correr mal não temos onde os tratar. E há doentes que precisam de suporte depois da cirurgia. Temos cuidados intermédios mas depois não temos cuidados intensivos. Prefiro adiar uma cirurgia dois meses do que “matar” um doente hoje. O que está a acontecer, e bem, é que são contratualizados blocos operatórios em hospitais privados e as equipas do hospital público deslocam-se aos hospitais privados para operar doentes do hospital público. Mas isso tem limitações, claro. De resto, as consultas são mais espaçadas e ajusta-se sobretudo a disponibilidade do hospital em termos de meios técnicos e humanos.

“Temos cuidados intermédios mas depois não temos cuidados intensivos. Prefiro adiar uma cirurgia dois meses do que ‘matar’ um doente hoje”

RC > SNS, público ou privado. Qual serve melhor o nosso país, tendo em conta também outras realidades que conhece?

RL > Os objetivos do privado e do público são diferentes. Mas o privado percebeu algo que o Estado não percebe: tem tanto mais lucro quanto melhores as condições que derem aos doentes que os procuram. Acredito que não há melhores profissionais de saúde no privado do que no público. Mas os os doentes vão cada vez mais ao privado. O número de pessoas que iniciou seguros de saúde subiu 10% nos últimos três meses do ano passado… Começaram a perceber que o Estado não responde. Além disso, no SNS não há meritocracia. Independentemente do que se ganha, há um certo empreendedorismo das equipas dentro de uma estrutura privada. No SNS, se trabalhar muito ganho tanto como se trabalhar pouco. No privado, tenho doentes que foram à internet pesquisar o meu trabalho. No público isso não existe. Mas sou 100% a favor de um SNS público. Ninguém deveria pagar para ir a um hospital público. Defendo que o Estado deveria dar a possibilidade ao doente de ir onde quiser e pagar a diferença pela consulta ou cirurgia, quer seja no público ou no privado. Os públicos tem necessariamente de ser melhores, porque ficam sem doentes e a fonte de rendimento são os doentes. Os privados também têm de ser melhores, porque só competem entre eles. Os custos de saúde também aumentaram muito. E ainda que paguemos muito não é suficiente para o que usufruímos. Percebo a necessidade de haver uma taxa mas deve ser tendencialmente gratuito.

RC > Quando percebeu que queria ser médico?

RL > Primeiro quis ser economista, porque o meu pai é técnico de contas. Mas cheguei à conclusão de que a contabilidade não me fazia sentido nenhum. Comecei a assistir a aulas de biologia e de química da área A. Não sabia se queria ser médico… comecei a pensar que queria ser investigador e fui para biologia. A meio do curso mais uma vez percebi que não era nada daquilo. Gostava de investigação mas não sabia quais eram os verdadeiros problemas das pessoas. É importante ter um sentido prático quando se faz investigação, sobretudo na área da saúde. Não acabei biologia e concorri outra vez, entrando em medicina para me sentir útil.

“O Estado deveria dar a possibilidade ao doente de ir onde quiser e pagar a diferença pela consulta”

RC > E acaba por especializar-se em urologia oncológica…

RL > A urologia é uma especialidade muito interessante. A maior parte das pessoas pensa que só vemos homens e só tratamos cancros da próstata. A especialidade desenvolveu-se muito nos últimos anos. Depois de ter feito urologia, a oncologia pareceu-me a área mais interessante. É uma área que tem muitas vertentes em muitas áreas de investigação. A oncologia da urologia tem uma taxa alta de sucesso, o que também acaba por ser reconfortante. Há muitos doentes que efetivamente curamos.

RC > Esteve em Toronto durante quatro anos a fazer doutoramento e investigação em simultâneo. A investigação é uma paixão?

RL > Os melhores projetos de investigação surgem de perguntas de doentes que não sabemos responder. E poucos me ensinaram a pensar assim… no Canadá ouvi muito isto. A vantagem de gostar de fazer investigação é traduzir num projeto uma questão de um doente. Tive essa sorte de responder a questões de doentes. Tive a sorte e a oportunidade de traduzir para um projeto uma questão de um doente com uma resposta. E hoje em dia esse projeto disseminou-se pelo mundo. Mas, durante o meu doutoramento, passei três meses a chorar. É um trabalho angustiante e solitário. Fiz clínica, doutoramento e investigação em simultâneo. A investigação é uma coisa que gosto e continuo a fazer. Mas, infelizmente, em Portugal ninguém quer saber disso.

RC > Durante alguns anos usou a bata branca e tocou saxofone, nomeadamente ao lado dos The Gift. O que guarda desses tempos?

RL > Foi espetacular. Guardo esses períodos da minha vida com muita emoção. À data não valorizei muito mas penso que é normal. Comecei por aprender órgão na Sinfonia, como a maioria dos alcobacenses daquela geração. Como sou asmático, o médico do Pediátrico de Coimbra, onde era seguido, disse que devia tocar um instrumento de sopro. E foi aí que os meus pais me inscreveram na Banda de Alcobaça e aprendi a tocar saxofone. Na época, o maestro era o professor Vítor Santos, que era também professor de saxofone no conservatório em Lisboa. Ia sozinho de expresso para o conservatório em Lisboa quando tinha uns 14, 15 anos… Era desorganizado e a música deu-me a oportunidade de ser organizado e aprender que é preciso ter organização e método nas coisas. Isso ajudou-me a entrar e a fazer medicina. Ainda hoje me ajuda. Andei na Escola de Música do Conservatório Nacional durante o 10.º, 11.º e 12.º anos. Conciliar as coisas aí não foi difícil, mas depois na faculdade foi. Estava em Coimbra e o Conservatório era em Lisboa e deixei de estudar. Foi a pior coisa que fiz, ainda hoje me arrependo. Podia perfeitamente ter conciliado. Hoje até me arrepio cada vez que toco no saxofone. Quanto estive em Toronto o diretor do serviço quis contratar-me para ficar lá porque considerava que tinha soft-skills que os outros não tinham. Os The Gift e a Banda deram-me isso. Na época não percebi a importância das coisas, mas percebi rapidamente que o meu objetivo primário não era estudar 500 páginas por semana. Se lesse 300 páginas estava tudo bem. A minha vida não era nem é só medicina.

RC > Alcobaça continua a ser a sua casa?

RL > Vai ser sempre. Tenho é pena que não seja uma cidade  apelativa. Não há planos para fixar pessoas. Da minha geração quase ninguém vive em Alcobaça. Ir a Alcobaça e não ver ninguém faz-me confusão. Como os meus pais também têm casa em Coimbra, é raro ir a Alcobaça.

RC > Em Alcobaça e na região, a falta de médicos nos centros de saúde continua a ser um drama. Vê alguma solução neste problema?

RL > Os cuidados de saúde primários são cruciais. Não gosto de ter um doente na minha consulta que não precisava de vir ter comigo. Por email ou por zoom, podia falar com o meu colega do centro de saúde. Só conseguimos ter isto com mais pessoas dentro dos centros de saúde e com tempo para fazer este tipo de consulta. As pessoas não optam pelos Centros de Saúde pelo dinheiro, vão por questões familiares e pela possibilidade de desenvolver uma carreira num local onde acreditam fazer algo útil ou diferente. Tem de haver melhor colaboração entre os cuidados primários e a medicina hospitalar. Os cuidados de saúde primários deviam ser cada vez mais autónomos. Não podemos estar a contabilizar coisas à linha. O poder político local devia ter a possibilidade direta de contratar pessoas para os centros de saúde. A mim não me chocava.

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