Juntam-se duas vezes por semana para cantar, mas o que acontece dentro do Centro de Bem-Estar de Coz vai muito além da música. Homens e mulheres, entre os 40 e os 92 anos, dão voz ao projeto “Quem Canta Seus Males Espanta”, um coro intergeracional e comunitário, que tem vindo a transformar rotinas, combater o isolamento e, acima de tudo, despertar o sentimento de comunidade.




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A ideia surgiu quando a instituição percebeu que havia um afastamento crescente da população em relação ao edifício. “O Centro de Bem-Estar de Coz convidou-nos para uma reunião porque tinham um problema que queriam resolver”, recorda Dalila Vicente, da Banda de Alcobaça, associação que dinamiza o projeto. “O afastamento da comunidade é algo muito comum nestas instituições.
Quem não precisa dos serviços, evita vir — mesmo com idade para isso — por não querer ser conotado com a casa”, acrescenta. Era preciso encontrar uma proposta que trouxesse as pessoas ao Centro, sem carregar o peso do estigma. A resposta veio com a música.
O coro arrancou no ano letivo de 2022/2023, inserido nos Projetos para a Comunidade da Banda de Alcobaça. Desde o início, a proposta foi clara: abrir as portas da instituição à comunidade, usando a música como um isco. “O nome não foi escolhido ao acaso”, partilha a diretora dos Projetos Para a Comunidade da Banda de Alcobaça. “No diagnóstico social desta casa, havia uma grande prevalência de demência, ansiedade e isolamento. A música, enquanto expressão emocional, podia ajudar a aliviar tudo isso”, resume Dalila Vicente. E ajudou. Em pouco tempo, o coro transformou-se num ponto de encontro inesperado: utentes do centro de dia e do centro de convívio, a diretora técnica, a animadora e a educadora social da instituição e reformados da freguesia. Todos encontraram ali um lugar, uns sentados, outros em pé — e uma razão para voltar todas as semanas.
Raquel Alexandre, maestrina e responsável artística do grupo, tem acompanhado essa transformação nota a nota. “Para mim, o desafio foi mais do que ensinar a cantar. Foi mesmo fazer música com eles. Havia muitos vícios do coro da igreja, como os glissandos. Tivemos de trabalhar respirações, entoação…”, partilha. A adaptação exigiu criatividade e paciência, mas os resultados surpreenderam até os mais céticos. No ensaio a que o Região de Cister assistiu, o coro dedicou especial atenção ao “ai, ai, ai” de “Regresso” do António Calvário, repetindo as notas com meticulosidade e entusiasmo.
Entre os sons que preenchem a sala de ensaios, destaca-se o da gaita de foles eletrónica tocada por Gabriel Xavier, membro da Direção da instituição e antigo gaiteiro. “Já tocava gaita de foles, mas por questões de saúde deixei de o fazer. Esta versão eletrónica tem todos os tons e não exige tanto esforço físico”, explica. O som contínuo e hipnótico da gaita funciona como um fio condutor para o grupo, ajudando na afinação e dando corpo às melodias.
O reportório é escolhido a dedo. As canções tradicionais portuguesas dominam, mas nunca por acaso. “Não é só o Papagaio Louro só porque sim. Tem de fazer sentido, respeitar a idade e a história das pessoas que cantam”, aponta Dalila Vicente. E são precisamente essas histórias que dão alma ao projeto — como se cada música fosse uma janela para a infância, para a juventude, para o trabalho no campo ou para os bailes de aldeia.
Maria Rodrigues de Sousa, de 92 anos, é a mais velha do grupo — e também uma das mais entusiastas. Canta todos os dias, com ou sem ensaios, e nem precisa de partituras. “O Salazar não fez escola para mim, fez uma enxada. Não sei ler, mas decoro as músicas e ando sempre a cantar”, diz, com orgulho. Trabalhou no campo, mondou arroz, ceifou e lavrou. Hoje, é utente do Centro de Dia da instituição, onde encontra memórias e afetos. “Gosto muito, muito, muito”, sublinha, com olhos vivos e sorriso aberto.
Amílcar Grave, de 78 anos, é um dos poucos homens do coro. Nunca tinha cantado antes. “Ando na ginástica e foi lá que perguntaram se algum homem dos Montes queria ir para o coro”, lembra. “A minha garganta não é grande coisa, mas agora está melhor desde que tomo uns chás de gengibre e limão”, acrescenta, bem-humorado. Para o reformado, o coro é mais do que uma atividade — é um motivo para sair de casa. “A mulher prefere ficar em casa… mas, eu tenho alergia à enxada”, brinca.
Entre os mais novos está Ana Paula Pires, educadora social do Centro de Bem Estar Social de Coz, com 40 anos. Participa no coro ao lado dos utentes e sublinha o impacto visível da música. “É muito estimulante para os utentes. A interação com pessoas de fora é muito importante. Para quem é mais depressivo, a evolução tem sido notável. A música é terapêutica, faz-nos sorrir e faz pequenos milagres”, garante. Mesmo com a dificuldade de conciliar os ensaios com o trabalho, o bem-estar que resulta da experiência compensa tudo. “É mesmo terapêutico para todos”, garante.
Alda Gomes, diretora técnica da instituição, foi uma das impulsionadoras do projeto. “Queríamos muito uma atividade fora da caixa. Não queríamos fazer as coisas do costume. Falámos com a Banda de Alcobaça e surgiu esta oportunidade. Foi e continua a ser muito positiva”, resume. O coro trouxe vitalidade à instituição e tornou-se num ponto de união para a comunidade. “É uma forma de cortar a rotina e considero mesmo terapêutico. Mesmo as pessoas que não participam no coro andam a trautear as canções o dia todo”, afiança a diretora, que também “aprendeu” a cantar no coro.
Hoje, o grupo sai do Centro de Bem-Estar de Coz para cantar noutros palcos, sempre que é convidado. Já participou em encontros comunitários, feiras e iniciativas culturais locais. Mas o maior espetáculo acontece nos ensaios bissemanais. É ali que se afina mais do que a voz — afina-se o espírito, a confiança, o prazer de estar com os outros e a sensação de pertença. Porque, como diz o ditado que dá nome ao projeto, quem canta seus males espanta.