Com calças de ganga e uma camisola justa e listada, Daud passa despercebido. Mas este estilo de vestuário ocidental fez com que, na cidade natal de Mossul, no Iraque, fosse condenado a 80 vergastadas em público.
Com calças de ganga e uma camisola justa e listada, Daud passa despercebido. Mas este estilo de vestuário ocidental fez com que, na cidade natal de Mossul, no Iraque, fosse condenado a 80 vergastadas em público. Esta, e muitas outras atrocidades cometidas pelo autoproclamado Estado Islâmico, ou Daesh, levaram Daud Al Anazy, pseudónimo do iraquiano, a arriscar tudo, incluindo a própria vida, para abandonar o país que amava em “busca de uma vida”.
A história atribulada dessa viagem, desde Mosul até ser acolhido na Misericórdia de Alfeizerão em dezembro do ano passado, figura agora num livro. “De Mosul a Alfeizerão em 6.000 palavras” é, apesar de todas as adversidades vividas por Daud, uma história de amor. “Amor ao outro, à diferença, à diversidade, à independência e à liberdade”, conta o autor.
A viagem foi dura e longa. “Medo do desconhecido? O medo do conhecido era muito maior”, escreve Daud. O iraquiano deixou um país assolado pela guerra e, até chegar a Portugal teve de enfrentar uma verdadeira jornada hercúlea. Daud iludiu as fronteiras do Daesh ao viajar dentro do tanque de um camião cisterna durante nove horas até chegar à Síria. Depois, teve de correr durante muitos e longos minutos debaixo de fogo de militares para atravessar a fronteira para a Turquia e, finalmente, tentou chegar à Grécia num barco lotado que, “a pique”, naufragou “em menos de um minuto”. Pelo meio perdeu tudo. Mais do que uma vez. Mas ainda conseguiu ajudar a salvar duas crianças, de 2 e 4 anos, de se afogarem no mar que devia ser “nosso”.
Depois de uma viagem de milhares de quilómetros e cheia de adversidades, Daid Al Anazy conta em livro a história da jornada que o levou a deixar o Iraque até ser acolhido na Misericórdia de Alfeizerão.
Depois de quatro horas em águas geladas, a “agarrar-se pela vida”, Daud e os sobreviventes do naufrágio foram resgatados pela guarda costeira grega e chegaram à ilha de Lesbos, local que recebe milhares de refugiados vindos de várias partes do Médio Oriente. Já em solo da União Europeia, o iraquiano foi abordado sobre a possibilidade de ser acolhido em Portugal. Apesar de o destino inicial ser “a Suécia, Alemanha ou Holanda”, Daud Al Anazy não hesitou em aceitar o repto e, no dia 17 de dezembro, chegou a Alfeizerão acompanhado por mais quatro refugiados.
Há mais de seis meses a residir na região, o iraquiano, de 24 anos, já começou a aprender Português, língua com a qual não tinha qualquer contacto, e está a trabalhar na Casa do Pão de Ló, em Alfeizerão, retomando a profissão que levava em Mosul, antes de o Daesh ter invadido a cidade em junho do ano passado e lhe ter arruinado o negócio do café que geria. A adaptação não tem sido fácil mas, com a ajuda de Helena Lopes Franco, co-autora do livro e professora de Português, e da equipa da Misericórdia de Alfeizerão, Daud tem levado uma vida “tranquila e normal”.
O livro, que foi apresentado na Casa do Pão de Ló no passado sábado, pretende “divulgar e despertar consciências” para algo que pensamos que “está longe”.
Helena Franco considera que a experiência de Daud é importante porque, além de ser “um retrato do mundo atual”, “mostra o melhor e o pior da humanidade”. O relato do iraquiano é extenso e muito detalhado. Conta o terror sentido por milhões de pessoas que foram afetadas pela guerra com o Daesh e que, quase diariamente, ouvimos na comunicação social. Esta semana, foi notícia mais um atentado no Iraque que vitimou 215 pessoas segundo os números mais recentes.
A leitura do livro é “um momento de reflexão” que, na opinião da co-autora, não vai deixar ninguém “indiferente”. O livro encerra, apenas, um capítulo tenebroso, mas com um final feliz, na vida de Daud. Ficamos à espera da continuação da obra e que o iraquiano possa contar como termina a sua aventura em Alfeizerão.