Nada (mesmo nada!) o para. Nem um acidente de trabalho que sofreu aos 24 anos e que o levou a ficar com o braço direito amputado. A história de Miguel Milheiriço, atleta do Alcobaça Clube de Ciclismo, poderia ser igual a tantas outras: a de alguém que não conseguiu dar a volta a acontecimentos menos felizes ou a de alguém que não ousou desafiar aquilo que se antevia como expectável. Mas (e ainda bem) não é o caso.
Este conteúdo é apenas para assinantes
A história que se segue é a de um lutador. De um homem, de 55 anos, que fez de um acontecimento negativo a sua maior força e que hoje é um paraciclista bem conhecido pelos amantes da modalidade. Bem conhecido e, diga-se também, já premiado, mas lá chegaremos.
Miguel Milheiriço tinha 24 anos quando no seu ofício – era agricultor de profissão – uma máquina agrícola lhe “desfez” parte do braço direito. “Foi um momento horrível na minha vida”, começou por contar, recordando o sucedido a 22 de outubro de 1991.
Mas, caro leitor, se pensa que o que se segue será uma história emotiva (daquelas de não conseguir conter as lágrimas) desengane-se, pois Miguel – permitiu-nos este trato – fez imediatamente questão de dizer que o único pensamento foi o de que seria a sua vida a partir de então. “Não podia fazer nada para mudar o que tinha acontecido, mas podia olhar para o futuro e fazer o melhor para me tentar adaptar”, frisou o alcobacense, contando como o paraciclismo ajudou a mudar o seu destino.
Alguns anos depois, e, refere, sem se deixar levar pelos pensamentos sobre a razão pela qual “lhe tinha acontecido a ele”, o funcionário do Jardim Escola João de Deus, em Alcobaça, começou a praticar spinning num ginásio para tentar manter a forma física. “Temia começar a engordar”, confessou, enquanto recordava o processo. “Foi então que conheci o Carlos [Santos], que me desafiou a começar a andar de bicicleta”, explica, lembrando a história do também paraciclista alcobacense. “Ajudou-me a arranjar uma bicicleta adaptada às minhas necessidades (as mudanças, os travões apenas de um lado, a água…) e, desde então, o bichinho cresceu cada vez mais”, asseverou. Daí a começar a participar em provas, em 2014, não distancia muito tempo.
Fã de granfondos, Miguel Milheiriço conta com várias medalhas em provas populares, tendo, como expoente máximo da sua carreira, a subida, por várias ocasiões, aos pódios nos campeonatos nacionais e nas taças de Portugal de paraciclismo. “Somos poucos, por isso, é mais fácil”, justificava Miguel Milheiriço, sempre em tom de brincadeira.
Além disso, aventurou-se também este ano pela Estrada Nacional 2, sendo um dos primeiros paraciclistas do País a percorrer a mítica estrada que atravessa Portugal de Norte a Sul. “Houve períodos em que pensei em desistir, mas a minha experiência de vida ajudou-me a superar”, aponta.
Para esta forma de “ver a vida”, disse, muito ajudou o paraciclismo: “somos constantemente colocados à prova com vários ‘obstáculos’ – o cansaço, as dores musculares… – e esse é também o retrato da minha história. O acidente que sofri foi um obstáculo, dos grandes, mas nunca me meteu medo o que viria depois disso. Depressa coloquei o ‘chip’ da recuperação e, anos depois, aqui estou. Feliz pelo meu percurso e de bem com a vida”, enalteceu, justificando com outras histórias.
“Antes de algumas provas, enquanto estamos a aquecer, as pessoas ficam a olhar para nós e lamentam a nossa situação. Mas, prontamente, respondemos, em jeito de brincadeira, que foi um camião que passou por cima de nós e um ficou sem braço, outro sem uma perna…”, graceja, sem nunca lamentar sobre o momento que mudou a sua vida. Ainda que entenda aqueles que “não conseguem lidar com o que lhes acontece da mesma forma”, Miguel prefere olhar para o presente… e para o futuro.
“Que o meu caso possa servir de exemplo aos desportistas, e às pessoas em geral, a quem a vida por vezes possa ser cruel, mas também aos que nunca passaram por nada idêntico”, finalizou Miguel Milheiriço, que, em tempos ainda sonhou com os Jogos Paralímpicos, mas que agora só “sonha” com a próxima vez que se vai fazer à estrada para mais uma prova de paraciclismo.
Os títulos de ”enorme batalhador” e de “eterno vencedor”, esses, são os maiores troféus da sua carreira (leia-se vida).
Paraciclista é visto como exemplo para jovens do Alcobaça Clube de Ciclismo
O presidente do Alcobaça Clube de Ciclismo (ACC) elogia a capacidade de superação de Miguel Milheiriço na equipa, esperando que os jovens atletas do clube possam olhar para o paraciclista como um verdadeiro exemplo a seguir.
“O Miguel tinha uma vida perfeitamente normal, mas devido a um acidente de trabalho tudo mudou, o que levou a que tivesse de se adaptar a uma nova realidade”, repisa Marco Madeira, enaltecendo que o paraciclista alcobacense, contudo, não se deixou abalar com o que aconteceu, dando uma verdadeira demonstração de superação e resiliência, que lhe permite hoje subir a muitos pódios a nível nacional.
“Essa é também a missão que tentamos incutir enquanto clube formador e, até com alguma particularidade no ciclismo. Por vezes, quando o cansaço das dezenas de quilómetros leva à exaustão, quando os músculos teimam em fraquejar ou as pernas já não aguentam um sprint final, que se lembrem dos ‘Miguéis’ desta vida: que ainda que a vida lhes tenha colocado obstáculos completamente inesperados pela frente, souberam superar as adversidades para um dia mais tarde serem uns verdadeiros vencedores”.
Mais que não seja naquela que é, sem sombra de dúvidas, a prova mais importante de todas: a da vida. Não é assim, Miguel?