Joaquim Guerra é um nome que permanece incontornável em Turquel. Nascido a 23 de novembro de 1911, naquela freguesia do concelho de Alcobaça, o médico formou-se em medicina na cidade de Coimbra e dedicou 64 anos de vida a cuidar do próximo. Na memória, ficam os 5.370 bebés que viu nascer durante uma carreira que perdurou até 2005, quando, aos 93 anos, ainda realizava algumas extrações dentárias. “O Cavaleiro”, como era apelidado na juventude pela grande aptidão para as habilidades equestres, cumpriu serviço militar na Infantaria e esteve ligado ao desporto, tendo sido presidente do Ginásio Clube de Alcobaça e do Hóquei Clube de Turquel, coletividade da qual foi fundador e sócio n.º1.
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A Quinta de Vale Ventos, um couto rural dos frades do Mosteiro de Alcobaça, foi o local que viu nascer Joaquim Guerra. Sendo o terceiro de dez filhos, fez a primária na Benedita. “Ia a cavalo num burro para a escola, aí a uns seis quilómetros”, disse numa entrevista ao Correio da Manhã em 2005. O pai, que trabalhava numa pecuária, defendia que aprender a ler e escrever chegava, mas mudou de ideias após a intervenção de um curandeiro da terra. Joaquim Guerra seguiu para a Figueira da Foz, onde completou o 5.º ano de escolaridade num colégio.
Continuou os estudos em Santarém e, posteriormente, em Lisboa. Quis entrar na escola de guerra, mas não conseguiu obter as classificações necessárias. Incentivado pelos colegas por ser um destino “mais barato”, rumou com eles para o Porto, para se formar em medicina, mesmo que em jovem “nunca lhe tivesse passado pela cabeça curar males alheios”. Após dois anos na invicta, o clima demasiado frio no inverno e muito quente no verão fê-lo mudar para Coimbra. Naquele meio académico “liberal”, entre “festas estudantis” e desfiles como cavaleiro tauromáquico na Queima das Fitas, fez os cinco anos do curso de medicina que terminou em 1939.
Já doutor, Joaquim Guerra regressa a Turquel para colocar em prática os conhecimentos que adquiriu. Passeava nas ruas “todo emproado”, como confessou ao REGIÃO DE CISTER em 2005, mas o trabalho era escasso. Até que surgiu a primeira situação em que foi necessário intervir. “Apareceu um sujeito montado numa mula a pedir ajuda porque a mulher tinha erisipela (doença infeciosa). Receitei-lhe uma pomada e pensava que lhe tinha dado o melhor tratamento, mas dias depois aparece o marido a dizer que a esposa estava pior e fiquei muito triste”, começou por explicar o turquelense, que só conseguiu resolver o caso com a ajuda da mãe que acabou por ser “a médica de serviço”. “Ela aconselhou-me a usar um óleo de trigo na doente e passado uns dias a mulher apareceu curada”, recordou Joaquim Guerra, admitindo que aquele episódio fez com que deixasse “de andar emproado”.
Após a morte do curandeiro da terra nunca mais faltaram casos para tratar na carreira do doutor Guerra. Sendo um médico da aldeia não tinha propriamente uma especialidade. Era necessário desdobrar-se e “ser especialista” em tudo o que aparecia, como contou ao Correio da Manhã. “Um médico no campo tinha de saber aplicar um remédiozinho nos olhos, nos ouvidos ou na garganta. Saber curar uma dor de barriga, fazer nascer bebés. Tive até de aprender a lidar com a humildade das pessoas”.
O sucesso do trabalho começou a ser notório, não tendo ficado pelo consultório de Turquel, anexo à casa em que fora criado. Onde houvesse um doente, o doutor ia inicialmente “de cavalo” e depois “de bicicleta e Opel à manivela”. Abriu um consultório na Benedita e, posteriormente, em Rio Maior. Levava cinco escudos por consulta, “a quem as podia pagar”. Foi através da “melhor profissão do mundo”, como classificou na época, que viu nascer 5.370 bebés. Muitos deles tornaram-se seus afilhados e, ao longo da vida, “nunca lhes foi cobrada uma consulta”.
Também fora da medicina Joaquim Guerra foi um homem de causas. Foi fundador e presidente do Hóquei Clube de Turquel (HCT) porque “quando os pioneiros precisaram de ajuda para transformar um sonho num clube, foi, naturalmente a primeira pessoa em que todos pensaram”, pode ler-se no site oficial do emblema, que destaca o “dinamismo, empreendedorismo e bairrismo” do doutor Guerra.
Joaquim Guerra faleceu no primeiro dia do ano de 2007, aos 95 anos, deixando uma longa carreira no mundo da medicina e uma vida inteira reconhecida pela dedicação, generosidade e associativismo na freguesia de Turquel, mas também no restante concelho de Alcobaça.
Figura incontornável também do desporto regional
É impossível dissociar Joaquim Guerra do Hóquei Clube de Turquel. Foi o sócio fundador n.º 1 e o responsável pela construção de um rinque de piso de cimento, que foi inaugurado no verão do ano 1962. “Médico da terra, homem desde sempre muito interessado por tudo o que era desporto, tomou conhecimento, entusiasmou-se com esta ideia ‘atrevida’ e resolveu dar uma ajuda a estes jovens”. É assim que o Hóquei Clube de Turquel o descreve na história da fundação do clube, retratada no site oficial e onde são relembrados nomes ímpares que ajudaram a construir um clube com um legado absolutamente único no panorama do hóquei em patins português e, quiçá, internacional.
E não é por acaso que o clube, e toda a massa associativa, lhe prestam homenagem temporada após temporada. Isto porque o primeiro momento competitivo da equipa sénior dos Brutos dos Queixos é sempre no Troféu Dr. Joaquim Guerra, um dos torneios de pré-temporada mais conceituados a nível nacional e que regularmente leva a Turquel algumas das melhores equipas portuguesas, mas também emblemas de outros países da Europa.
São já 32 edições da competição, sendo que a última, disputada no passado mês de setembro, viajou até Oliveira de Azeméis, equipa que venceu quatro das últimas nove edições. Nos últimos anos, acrescente-se, o HC Turquel apenas conseguiu manter o troféu na aldeia do hóquei em 2016, quando superou o Paço de Arcos, a AD Valongo e a… Oliveirense.
Joaquim Guerra não só dá nome ao troféu, como também deu início a uma série de figuras que viriam a marcar posteriormente a história do emblema que ajudou a fundar. Nomeadamente, o sobrinho Tiago Guerra, que liderou os destinos do clube durante 25 anos.
Além disso, Joaquim Guerra foi ainda presidente da Direção do Ginásio Clube de Alcobaça, na década de 80, tendo ficado ligado a um “valioso donativo de muitos amigos emigrados nos Estados Unidos da América”, oferta que levou o Ginásio a subir, um ano depois, à 1.ª Divisão nacional. Foi, aliás, um dos presidentes mais emblemáticos da história dos azuis, tendo deixado um legado que ainda hoje lhe é sobejamente reconhecido.
Joaquim Guerra viria ainda a ser condecorado com a medalha de prata do Município de Alcobaça como forma de reconhecimento pelos serviços prestados em prol do desporto local e regional. No futebol, também no basquetebol, mas sobretudo no crescimento do hóquei em patins.