Durante vários meses, as crianças da Componente de Apoio à Família (CAF) de Alpedriz, Casal de Ramos e Carris e idosos do Centro de Bem-Estar Social de Coz, o Centro Social e Paroquial do Bárrio e a Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça trocaram “afetos” através de cartas. O projeto, desenvolvido em parceria com os Projetos para a Comunidade da Banda de Alcobaça – Associação de Artes e várias instituições de solidariedade social da região, desafiou miúdos e graúdos a “resgatar” o valor das cartas manuscritas, criando relações intergeracionais marcadas pela empatia, pela escuta e pelo tempo partilhado à distância.
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“O que diferencia este projeto de outros é a continuidade e personalização. Não é uma troca pontual. É um processo com tempo, com espera, com construção”, sublinha a diretora dos Projetos para a Comunidade da Banda de Alcobaça. “Cada carta é escrita com intenção. E isso obriga a pensar, a organizar o pensamento, a refletir sobre o outro. Para as crianças é um exercício de escrita e empatia. Para os idosos, é uma oportunidade de se sentirem ouvidos e lembrados”, acrescenta Dalila Vicente.
As cartas circularam entre outubro e março. Algumas crianças escreveram com apoio dos professores, outras fizeram-no de forma autónoma. O objetivo não era apenas pedagógico, mas também humano: estimular a escrita manual, promover competências emocionais e sociais, incentivar o diálogo entre gerações e combater a solidão dos mais velhos através de uma relação afetiva e continuada.
No final da experiência, chegou o tão aguardado encontro presencial. Houve abraços tímidos, risos emocionados, troca de pequenos presentes, música e um lanche comunitário.
“Quando cheguei e vi os miúdos, pensei: será que é a mais pequenita? Adivinhei logo”, contou Maria do Rosário, que correspondeu-se com a pequena Carlota, de 7 anos. “Escrevi que andava no coro – uma coisa que temos em comum –, que andava na ginástica acrobática e que me tinha inscrito agora na natação”, recorda a menina que frequenta o 1.º ano. “Quando recebi a primeira carta foi uma grande felicidade, mostrei logo à minha filha e disse-lhe que tinha uma nova neta emprestada”, partilhou a avó Maria do Rosário.
A pequena Melanie (nome complicado para a avó Marília pronunciar) confessou que nunca tinha escrito uma carta na vida. “O mais giro era receber as cartas. Lia tudo e respondia. Estava ansiosa por a conhecer. Tenho duas avós e ganhei mais uma.” A “avó” Marília, que confraternizou também com a bisneta verdadeira no encontro, ofereceu-lhe um marcador de livros.
Martim, de 10 anos, conheceu o senhor Amílcar, que lhe falou dos tempos em que escrever cartas era parte do quotidiano. “Com a idade dele escrevia muitas. A minha mãe não sabia escrever, e eu escrevia para uma tia em Lisboa”, lembrou o avô. “O mais fixe foi conhecer os avós”, respondeu Martim. “Eu só tenho uma avó, e não tinha nenhum avô”, acrescentou.
Houve também momentos de tristeza. Um dos idosos faleceu durante o ano, e a criança com quem se correspondia foi convidada a decidir se queria continuar com outro sénior. “Tratámos o tema com normalidade e sensibilidade”, explica Dalila Vicente. “A morte faz parte da vida. E quando perguntámos à criança se queria continuar, ela disse que sim. Um novo idoso prontificou-se a apadrinhá-la”, explicou a responsável.
A pequena Beatriz chorava por não ter encontrado, na praia fluvial de Alpedriz, a “sua” avó, Maria Judite, que não pôde estar presente no encontro. “Ela queria muito conhecê-la. Não se lembrava bem do que tinha escrito, mas sabia que tinha sido especial”, conta a professora Filipa Pereira. Ruben, por outro lado, encontrou Arlinda, elogiou-lhe a letra e acabou por receber também um elogio: “Tens uns olhos muito bonitos”.
O projeto “Cartas de Afetos” regressará no ano letivo 2025/2026 com a mesma fórmula: cartas mensais, relações individuais, encontros finais presenciais. E com o mesmo propósito — mostrar que, mesmo em tempos digitais, há algo de insubstituível numa carta escrita à mão. Sobretudo quando o que se escreve é afeto.