Quinta-feira, Março 28, 2024
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André Cunha Leal: “Esta edição do Cistermúsica foi especial, superou-se a si própria”

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O ano de estreia de André Cunha Leal no Cistermúsica acabou por ser a edição mais desafiante da história do festival. Considerando que o Cistermúsica venceu a “batalha” à Covid-19, o novo diretor artístico elenca a confiança dada ao pública e aos artistas em pandemia.   

O ano de estreia de André Cunha Leal no Cistermúsica acabou por ser a edição mais desafiante da história do festival. Considerando que o Cistermúsica venceu a “batalha” à Covid-19, o novo diretor artístico elenca a confiança dada ao pública e aos artistas em pandemia.   

REGIÃO DE CISTER (RC) > Todos os 15 concertos da edição de 2020 foram preparados ao pormenor e tiveram lotação esgotada. Pode-se afirmar que o Cistermúsica fintou a pandemia?
ANDRÉ CUNHA LEAL (ACL) > Claramente. Em março apanhámos um grande susto e até junho andámos a tentar perceber o que fazer. Ponderámos todos os cenários: desde o cancelamento ao adiamento. Ninguém sabia muito bem como é que o vírus se ia comportar e a ansiedade maior foi perceber quais eram as regras porque sabendo as regras queríamos dar um sinal de confiança em dois sentidos: confiança ao público e confiança aos artistas. Muitos dos artistas que pisaram o palco do Cistermúsica fizeram-no pela primeira vez desde que foram obrigados a ficar em casa e isso foi particularmente emocionante. Houve momentos em que nos chegaram a vir as lágrimas aos olhos porque percebia-se essa gratidão e essa vontade de estar ali. A confiança para o mundo artístico é muito importante. Nesta pandemia um dos setores mais arrasados foi o cultural. Todos nós, agentes dos espetáculos e artes, ficámos em suspenso, sem saber como ia ser a nossa vida imediata, e de repente conseguimos cumprir as regras, adaptar programas, reportórios, conceitos, tirar partido das tecnologias e com isso tudo conseguir levar uma mensagem para a comunidade artística. O Cistermúsica foi dos poucos festivais resistentes, mas com o impacto do Cistermúsica não creio que tenha havido outro a este nível e isso sentiu-se nas redes sociais e na comunidade artística. Recebemos pessoas ligadas à música do Porto, Coimbra e Lisboa. A comunidade reconheceu-nos o mérito de termos insistido em fazer. Passar por todas estas angústias e em julho chegar à Cerca do Mosteiro e ver o palco montado com aquele cenário lindíssimo foi das coisas mais emocionantes que me aconteceram na vida de programador. Foi muito emociante ver que em Alcobaça conseguimos dar um sinal tão grande e tão importante para todo o País.

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RC > Persistência foi a palavra chave para a realização da edição deste ano do festival?
ACL > Há uma pessoa que tem de ser mencionada: o Rui Morais. Foi absolutamente incansável e a ele se deve essa persistência. Com o cancelamento de outros programas em abril em que estava envolvido e com o Cistermúsica com data inicial de junho/junho, enquanto programador estava naquele limbo do que podia ser e não podia ser. Curiosamente, o Rui Morais dizia-me que isto se ia fazer, só faltavam as regras. E foi uma questão de uma semana. A conversa seguinte que tivemos já foi como é que vamos adaptar isto. Temos uma orquestra de 70 elementos? Não podemos, temos uma orquestra de 40. Não podemos ter coros grandes? Vamos reajustar. Um dos concertos que foi o maior símbolo dessa capacidade de adaptação foi o que encerrou o festival com João Barradas, Bárbara Barradas e Cátia Moreso. Na verdade, tínhamos programado outra obra para a Nave Central com orquestra e coro, mas de repente tudo se transformou num projeto que para mim foi ainda melhor. Foi absolutamente mágico. Este concerto foi uma espécie de catarse deste período que vivemos, que tem a ver com essa capacidade de adaptação da equipa e da direção artística do Cistermúsica. Quando se tem a Orquestra Filarmónica Portuguesa a fazer a 5.ª Sinfonia de Beethoven ou quando se tem os Músicos do Tejo com o Ricardo Ribeiro e a Ana Quintans, estamos a falar de um tipo de concertos e de forças que em março, abril, maio e junho pensámos que não seria possível ter em palco. E afinal foi e encheu. Em abril, o Alexandre Delgado mandou-me um email a lamentar a pouca sorte deste ano, que deveria ter sido o ano Beethoven e acabou por ser o ano Covid. Mas, logo no primeiro concerto com o Quarteto do Tejo começámos a marcar o ano de Beethoven. Conseguimos marcar o ano Amália com Ana Quintans e Ricardo Ribeiro e com Vasco Dantas quando nos surpreende com um arranjo dele próprio da “Gaivota”. E terminar com a coreografia de Carmina Burana é também simbólico. A arte que foi mais sacrificada pela Covid foi a dança. O festival de Alcobaça fez uma grande produção, em que o cenário é o próprio Mosteiro, e levou-a a todo o País através do streaming. Esta edição do Cistermúsica foi especial e não é por ter vencido a Covid, superou-se a si própria. Fez do impossível o possível e passou uma mensagem importantíssima para o público e para os artistas. Prova disso é que já temos milhares de propostas de artistas para o próximo ano.

“Muitos dos artistas que pisaram o palco do Cistermúsica fizeram-no pela primeira vez desde que foram obrigados a ficar em casa e isso foi particularmente emocionante”

RC > Como foi esse processo de manter a qualidade numa edição obrigatoriamente diferente em tempo recorde?
ACL > Tivemos de ser muito rápidos a reagir. A primeira coisa foi olhar para as regras e para a programação original e perceber o que podia e não podia ser feito, o que era adaptável e não era adaptável. Alcobaça não vai ficar sem o que pensámos, não é para descartar, adia-se e quando houver condições voltamos a repor a programação que está em suspenso. A maioria dos projetos internacionais tiveram de cair com os voos suspensos. Dentro dos agrupamentos que podiam, veio o trabalho de programador em adaptar e aí foi quase instintivo. A grande angústia era não saber as regras e as orientações da DGS. Sabendo as regras, há reportório para tudo. A história da música tem 900 anos, não temos de ficar paralisados. Não podemos ter tanta música sinfónica, temos mais música de câmara. Não podemos ter coros grandes, temos coros pequenos. Ficámos desfalcados de programas? Não faz mal… vamos, entre os artistas portugueses, arranjar planos B que se transformam em planos A. Os artistas estavam desejosos de ter oportunidade para voltar ao trabalho. Os Músicos do Tejo, por causa do convite de Alcobaça, foram ao CCB e neste momento estão a fazer este programa pelo País. O festival de Alcobaça serviu também para arrancar projetos.      

RC > A teimosia da organização e a garantia das condições de segurança foram decisivas para a realização do festival, mas havia a dúvida: como iria aderir o público. Foi surpreendente esgotar todos os espetáculos?
ACL > Nos 15 concertos o público comportou-se admiravelmente. O público português é exemplar. Estamos num país em que as pessoas levaram a sério os avisos. Desde o primeiro dia, as pessoas entraram de máscara, ocuparam os seus lugares, nunca tiraram a máscara e no fim cumpriram as orientações da equipa e dos voluntários de forma a evitar as aglomerações. Uma das coisas que mais me deixa feliz é que fizemos 15 concertos esgotados em que o público entrou são e saiu são e saudável.

“O Cistermúsica foi dos poucos festivais resistentes, mas com o impacto do Cistermúsica não creio que tenha havido outro a este nível”

RC > Há muito que se fala na internacionalização do festival… continua nos planos?
ACL > Era o grande plano deste ano. Além do ano Beethoven, queríamos tirar partido do ano da circum-navegação para começar a reforçar os laços com Espanha. Íamos ter uma verdadeira programação ibérica. Não se fez, mas vai-se fazer. A internacionalização do festival tem de começar por Espanha, faz muito sentido que o Cistermúsica entre num circuito ibérico e depois dê o grande passo que é o circuito europeu, um circuito ambicioso. Temos de ter a noção que um festival médio em Espanha tem aproximadamente três ou quatro vezes mais orçamento que o maior dos festivais portugueses. Portugal está, por questões de desestruturação da cultura nacional, bastante atrasado em relação ao que é o investimento público e privado. Em plena pandemia, em Alcobaça, conseguimos ter um mecenas privado – BPI Fundação La Caixa – que não deixou cair o patrocínio. Isto dá alento para podermos ir mais longe e podermos ambicionar esta internacionalização. Também foi decisivo não perdermos os apoios da DGArtes, se perdêssemos era o caos. O Estado deu-nos capacidade para nos adaptarmos, sem perder o apoio que já tinha sido dado. Penso que a edição deste ano do Cistermúsica deu sinais importantíssimos para poder ambicionar um festival mais europeu. É agora necessário orçamento para jogar com os parceiros externos, é necessário investimento infraestrutural – e aí devemos dizer que temos a aliada número 1, que é a diretora do Mosteiro Ana Pagará – e é necessário recuperar propostas que já foram feitas. A internacionalização faz-se quando conseguirmos trazer referências internacionais que colocam o Cistermúsica como um festival de referência a nível nacional que fornece um serviço, como se fosse uma Gulbenkian. Mas a outra forma de internacionalizar é quando conseguirmos com isso, com as referências internacionais, catapultar os artistas portugueses lá fora. Estamos a trabalhar num plano muito ambicioso, queremos cruzar experiências de grandes nomes internacionais. A música erudita (80% do Cistermúsica) é a que mais se internacionalizou e a verdade é que temos espiões em todo o lado. Temos de perceber como eles nos podem ajudar a tornar Alcobaça o ponto de encontro destes portugueses que estão lá fora e saber como esses portugueses que trabalham com alguns dos melhores músicos do mundo podem trazer esses amigos a Alcobaça para aqui fazerem um festival. Queremos ainda recuperar outro eixo temático importante do festival, que são os amores proibidos.   

“Um dos conceitos que devemos saber explorar é o tempo fora do tempo que se sente aquando dos espetáculos nos espaços do Mosteiro de Alcobaça”

RC > Depois deste “ano zero” enquanto diretor artístico do Cistermúsica, o que leva de Alcobaça, das suas gentes e lugares?
RM > Já conhecia o Cistermúsica e fiquei a conhecer toda a equipa da Banda de Alcobaça, que organiza o festival, no ano passado. Logo desde a primeira reunião percebi que estava perante uma equipa especial. Senti que tinha as pessoas certas no lugar certo. Isso deu-me imenso confiança. Em Alcobaça posso ser só programador e isso é um luxo. Por outro lado, o Mosteiro é o cenário ideal para este festival. Tem tanto de belo e mágico como tem de difícil, porque a acústica é difícil. Mas, o próprio Mosteiro faz o cenário. Quando estamos na Cerca, percebemos logo o que podemos fazer lá e fazemos grandes produções na nossa cabeça. Às vezes é só preciso jogar com a iluminação. O mais mágico deste ano foi perceber como se fez, como foi a adesão do público, como o público respondeu, ver as equipas a trabalhar, a persistência da equipa e perceber que é possível fazer cultura em épocas de crise. Enquanto estava a assistir aos concertos de Vasco Dantas Rocha e Daniel Bernardes, transmitidos em streaming, tive momentos nos claustros do mosteiro em que parecia que o tempo tinha sido suspenso. Percebi que é outra das características ímpares do Cistermúsica: realizar-se naquele mosteiro e com aquela carga emocional. Aqueles espaços têm a capacidade de nos fazer retirar do século XXI. Faz-se magia que não se consegue fazer numa sala de espetáculos tradicional. São Pedro podia ser mais generoso com a região oeste, mas tirando isso é tudo mágico. Um dos conceitos que devemos saber explorar é o tempo fora do tempo, a temporalidade daquele monumento e a forma como podemos adaptar isso aos vários espetáculos nos vários espaços. Este foi um ano zero muito desafiante e que me permitiu perceber que quase tudo era possível. Por mais anos que tenha como programador penso que nunca me vou esquecer deste ano. Foi um ano de adaptação sob adaptação e adaptação.

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