Íamos mudar de vida! A mudança para a casa nova representava uma nova etapa e eu tremia de entusiamo e de expectativa. Na altura não fazia ideia de que, no virar da década de 70, era o país inteiro que se preparava para uma nova vida e que era, todo ele, uma nova casa.
Não devia ter mais do que 8 ou 9 anos e, no entanto, conseguia sentir o peso do que deixávamos ali. A visão dos homens de negro que tinham levado à força a minha mãe, daquele mesmo espaço cheio de caixas e de tulhas que se prolongavam até ao tecto, deixando-me sentada no balcão alto com montra de vidro, mesmo ao lado da balança de pesos e dos cartuchos de papel. Os soluços contidos da minha avó, quando me ajudou a descer. A minha esperança na boneca-que-fala que ela me tinha prometido trazer quando regressasse lá de Caxias. As filas de espera para o telefone, que era o único da aldeia e cujo número de impulsos, tantas vezes assentara num livro de fiados. Ou ainda o ruído da mota do meu pai quando saía para fazer uns biscates, antes de, já no seu Ford Cortina branco, e de camisa lavada, partir para o mundo e visitar novos clientes.
No enorme pátio da velha casa, cuja frente era ocupada pela antiga taberna e pela mercearia da aldeia, ardiam agora os despojos do que já não podíamos transportar para a casa nova, para o escritório novo, para o futuro vibrante que nos esperava.
Para trás ficava uma vida dura, ou assim a imaginava. Em que pai e mãe se tinham desdobrado em trabalhos múltiplos para construírem tudo de novo e podermos inaugurar este dia de esperança.
Ao olhar, fascinada, para as chamas que se erguiam como um farol, girando para o alto, recordo as enormes mãos do meu pai a despejar no brasido um monte de livros pretos.
Gritei! Puxei-lhe o braço para o chamar à razão. Naqueles livros de fiados havia páginas e páginas de contas por pagar. Dívidas que alguém, uma família, uma viúva ou um velho solitário, não tinham podido saldar. Ali estavam assinalados fardos inteiros de bacalhau, quilos de arroz, de massa ou de açúcar, barras de sabão azul e branco, centenas de gramas de colorau, cartuchos de erva-doce, velas de cera, caixas de fósforos…
Eram as compras da semana ou do mês que, enroladas em papel pardo e fechadas com fio de algodão, vira saírem da nossa mercearia todos os dias. Não havia sacos de plástico. As senhoras de lenço e avental traziam sempre uma seira de vime ou levavam os embrulhos à cabeça, numa canastra à maneira das nazarenas, amparada numa rodilha de trapos. Os homens, esses penduravam os maços num cordel e equilibravam-nos no cabo da sachola, que apoiavam ao ombro, antes da jorna e depois do mata-bicho. Caminhavam, eles, em passo indolente, por debaixo da samarra em direcção ao campo que já lhes não dava esperança, nem cumpria promessas. Elas eram ladinas. Altivas, umas, curvadas, outras, mas sempre afainadas, que as mulheres do campo eram duras e capazes…
Voltando às labaredas, onde já as capas negras dos livros de fiados, com a etiqueta debruada a vermelho que assinalava os meses e os anos de dívidas acumuladas, começavam a encarquilhar e as folhas a levantar o voo das fagulhas, recordo o desespero com que repreendi o meu pai.
– Agora nunca mais vais poder cobrar estas dívidas! Disse-lhe, derrotada, depois de perceber que aquelas páginas, com a caligrafia irrepreensível da minha mãe, já nunca mais poderiam ser lidas. Não as páginas traçadas, que essas eram as que tinham sido pagas. Eram as outras, as abertas, como lhes chamávamos, que me apavoravam.
– As dívidas, pai, as dívidas!
Condescendente, e com um sorriso que nunca saberei se de orgulho se de gratidão, respondeu-me, olhando as chamas brilhantes e fugazes, próprias do papel: – Já não existem, filha. Agora já ninguém nos deve nada. Agora já podemos ir para a casa nova!
Para o meu pai. Para que saiba que não esqueço a mais valiosa lição que se pode dar a um filho: a generosidade e a gratidão.