Há uns dias, no meio do lixo de milhares de imagens e graçolas animadas que, à falta de assunto ou de interesse, vai inundando as redes sociais para ridicularizar a pandemia ou desdramatizar o medo ou lá o que é, encontrei uma imagem que me fez congelar: uma pintura, creio, onde crianças cheias de vida brincam numa rua dividida por uma enorme parede de vidro, para lá da qual um grupo de velhos caminha para o desconhecido.
É uma alegoria tão triste como a realidade que procuramos não ver. Será o desconhecido para onde se dirigem os velhos retratados, apenas o vírus que lhes pode ceifar a vida? Fiquei a pensar que não. Há um outro vírus capaz de os impedir de viver, mesmo se lhes permitir que respirem. Há, no nosso alheamento, um drama maior do que o de uma doença. Há, na nossa sociedade, uma espécie de vergonha da velhice, ou de falta de paciência ou, simplesmente, de indiferença e crueldade. Há, todos os sabemos, dentro da nossa comunidade, e muito provavelmente na nossa rua, um lar clandestino, um velho abandonado, uma casa de repouso onde alguém depositou o seu velho, onde alguém o alimenta, mas onde não há vida porque ninguém vive ali… São casas de espera, de desconsolo, são antecâmaras da morte, são, na sua maioria e apenas com algumas excepções, depósitos de vidas finalizadas.
E há, na nossa consciência coletiva, uma vergonha que nos faz congelar quando nos acenam com uma imagem como aquela, ou com a notícia de mais um surto num lar, como se fossem muitos os lares com surtos, como se não soubéssemos que há milhares de outros lares que, por não terem surtos, podemos continuar a ignorar que existem… Estamos a fazer muitas coisas bem. Evoluímos muito, em muitos aspetos, sobretudo na saúde, na educação… Aumentou o tempo de vida e por isso os nossos velhos são agora mais velhos do que nunca e, nesse caminho, não os acompanhamos porque escolhemos escondê-los do lado de lá de uma parede, não de vidro, mas de betão, damos-lhes mais esperança de vida, mas de uma vida sem esperança. Porque os nossos velhos são velhos cada vez mais tempo e nós temos cada vez menos tempo para os nossos velhos. A este propósito vieram-me à memória uns versos de Zeca Afonso: “A velhice não se enjeita/Como o lixo da calçada/País que os velhos rejeita/Não é país, não é nada.”