António Engenheiro tinha 14 anos quando naufragou na primeira ida ao mar como pescador. Mais de meio século depois, revela os pormenores da maior tragédia de um barco de pesca da Nazaré nas últimas décadas, que ceifou a vida a oito pescadores. Apesar dos vários sustos por que passou, este nazareno, que resistiu a um cancro e “fintou” vários sustos de morte na faina, fez toda a vida na pesca e na marinha mercante. E é o primeiro “herói” anónimo que dá o mote na rubrica “A nossa gente”, projeto apoiado pelo fundo de jornalismo europeu “Local Media for Democracy”.
Às primeiras horas da manhã de 15 de maio de 1966 uma volta de mar inesperada traçou o destino da “Ana Laura”, uma traineira que fazia a pescaria inaugural, mas que, por um daqueles sortilégios, tinha saído do Porto de Peniche a uma sexta-feira… 13. O destino parecia traçado para a embarcação, que embateu contra as rochas nas Quebradas dos Braçais, na Serra do Bouro, nas Caldas da Rainha e ficou destruída. O mestre Tomé da Bota e outros dez homens subiram as escarpas, para se agarrarem à vida. Entre eles estava António Engenheiro, um rapaz que tinha acabado de tirar a cédula e também se salvou. Apesar do susto, este náufrago nunca foi capaz de virar as costas ao mar, porque, naquele tempo, a vida era mesmo assim.
“Naquele tempo, quem não fosse para o mar era, como assim dizer, um tótó, por isso nós queríamos era ter a cédula”, relembra o nazareno, que tinha 14 anos quando subiu a bordo da traineira “Ana Laura” e já trabalhava em terra, com o intuito de “ajudar” as despesas da casa, sobretudo depois de o pai ter perdido um braço na pesca.
O jovem pescador, no entanto, tinha um “pressentimento, porque aquilo foi tudo apressado” e, sobretudo, por não se terem cumprido as regras que a tradição dos pescadores impunham. “Não fizemos as três voltinhas à enseada [da Nazaré]”, que serviam para pedir proteção divina à Senhora da Nazaré e “o barco estava pronto a sair para o mar numa sexta-feira 13”. Até no bota-abaixo “dois homens se aleijaram”. Mais um sinal… Ainda assim, a pescaria avançou na madrugada de sábado, junto à Figueira da Foz. Mas “como o mar estava alterado”, o mestre decidiu trazer a embarcação para mais perto de Peniche. Como já tinha muitas horas ao leme, o patrão cedeu o controlo ao contramestre, mas o nevoeiro denso precipitou o desastre na madrugada seguinte.
“Só senti uma onda a varrer a parte de cima do barco. A casa do leme desapareceu, a traineira ficou à deriva até se fixar nas rochas e fomos tentando sair, um de cada vez. Vi o Tomé da Bota agarrar um homem e tirá-lo do mar”, revela o nazareno, hoje com 72 anos, que se agarrou à vida com todas as forças e, apesar daquele grande susto, continuou a trabalhar como pescador na frota local. E para o mesmo mestre, que andou ao mar com uma embarcação emprestada por um amigo de Peniche. Por lá continuou alguns anos, até que chegou a idade de tomar decisões importantes sobre o futuro.
“Para fugir à guerra” do Ultramar, António Engenheiro decidiu ir para a pesca do Bacalhau. Por lá passou mais alguns sustos e, inclusivamente, escapou por pouco a um acidente que vitimou um colega em plena Terra Nova. A cada susto, ganhava novas forças, com a ambição de continuar a prover à família.
Terminados os duros anos na pesca do Bacalhau, volta a casa, para encetar mais um desafio. Assentou na marinha mercante, o que lhe permitiu “melhorar a vida” e ajudar dois filhos a seguir os estudos. “Sou Engenheiro, mas só de nome. Mas tenho um filho engenheiro e uma filha farmacêutica”, brinca o homem que passou “muitos sustos” e que já venceu um cancro nos intestinos. Nada parece suficiente para abater este “herói” do nosso quotidiano, que, agora já aposentado, continua a trabalhar. Faz umas horas numa empresa de aluguer de insufláveis, tomando contacto com crianças de toda a região. No verão, instala-se no insuflável gigante que está colocado na praia, sorrindo para os petizes e com o oceano por perto. “Passo horas no Promontório só a olhar para o mar”, observa este náufrago que nunca foi capaz de virar as costas ao mar.
Porto de Abrigo ajudou a salvar vidas de pescadores
O Porto de Abrigo da Nazaré foi inaugurado a 3 de setembro de 1983, embora apenas tenha aberto à navegação três anos depois. Passam, assim, quatro décadas de um momento marcante na história de uma localidade que lutou pela construção de um porto desde o final do século XIX. O projeto conheceu avanços e recuos, mas é preciso esperar pelos alvores da democracia para que sejam criadas condições para a realização da obra. Mário Soares era primeiro-ministro quando o concurso público foi lançado, em 1978, e também chefia o Governo na inauguração do equipamento.
“O Porto chegou com décadas de atraso. Apanhámos muitos sustos, nomeadamente em São Martinho. Não havia pescador que não tivesse histórias para contar daquela barra”, explica António Engenheiro, salientando que as embarcações da Nazaré tinham de se dirigir para Peniche para atracar, o que tornava “mais difícil” a logística da pesca.
A luta dos nazarenos pela construção de um porto remonta ao final do século XIX e, em 1901, o rei D. Carlos lançou um imposto sobre o resultado da pesca com vista a pagar a obra do paredão, uma significativa evolução para a comunidade piscatória, mas que não resolvia os problemas.
Mesmo sem infraestruturas, na década de 1930 a Nazaré era um dos maiores centros de pesca do país, mas a propaganda do Estado Novo mantém a vila como imagem de marca do Portugal assente no “Deus, Pátria, Família”. Leitão de Barros filma “Nazaré, Praia de Pescadores” (1928) e “Maria do Mar” (1933), que retratam a luta dos pescadores com o mar e exaltam os portugueses. O regime protela a obra e faz investimentos noutros portos, nomeadamente em Peniche, então uma vila pequena, mas com condições para acolher a frota pesqueira. Dá-se um surto migratório oriundo da Nazaré. Nas décadas seguintes, o Estado Novo contrata agências para promover o país no mercado americano e também financiou a vinda de fotógrafos como Stanley Kubrick ou Henri Cartier Bresson à Nazaré e a outras zonas do país consideradas adequadas à promoção do estado-nação.
A inauguração do Porto acontece num dia com más condições do estado do mar e Mário Soares, que tinha previsto chegar de barco, aproveitou o momento para sublinhar “tal como disse um pescador, a importância desta obra“.
Este artigo e podcast foram apoiados
pelo fundo de jornalismo europeu
“Local Media for Democracy”