Desde que se candidatou a deputado pela Oposição Democrática através do círculo eleitoral de Leiria até ser ministro da Justiça, o alcobacense Alberto Costa teve um percurso carregado de peripécias. Em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, recorda alguns dos episódios mais marcantes e partilha algumas das suas preocupações em relação à sociedade moderna.
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REGIÃO DE CISTER (RC) > Estava em França quando aconteceu o 25 de Abril de 1974. Como soube o que estava a acontecer?
ALBERTO COSTA (AC) > Não fui trabalhar naquele dia por uma circunstância familiar. Estava em casa e à hora do almoço o noticiário abriu com as notícias de Portugal. Foi uma grande surpresa, ainda que não fosse uma surpresa absoluta, porque já tinha existido o 16 de Março e nessa data a imprensa francesa já tinha feito especulações sobre as evoluções. A crise do complexo político-militar em Portugal era conhecida, a imprensa francesa tinha correspondentes em Portugal, porque Portugal era a mais antiga ditadura da Europa e uma ditadura que conduziu a uma guerra colonial, quando os outros países já tinham resolvido esse dossiê através de descolonizações mais ou menos contenciosas. Durante esse dia as informações foram extraordinariamente escassas e foi necessário esperar todo o dia para que se apresentassem as imagens do poder. A grande curiosidade era saber quem comandava o golpe de estado. Só depois da meia-noite é que a televisão francesa passou umas imagens – ao mesmo tempo foram também passadas na televisão portuguesa – e aparece uma imagem de uma junta militar, com o [general] Spínola no meio e uma série de figuras desconhecidas à data. Era uma situação difícil de interpretar, aquelas figuras representativas das Forças Armadas não nos davam nenhuma indicação sobre o sentido daquela alteração. Só no dia a seguir começaram a chegar notícias de libertação de presos e da rendição da PIDE. Mas a amnistia que foi decretada em relação aos crimes políticos no dia 26 de abril não abrangia as pessoas que se tinham recusado a fazer a guerra colonial, como foi o meu caso. E isso só foi feito no dia 2 de maio. Com essa publicação, eu e a minha família – casado e com duas crianças, uma das quais com menos de 1 ano – viemos logo no dia 3 de maio. Assim que regressei apresentei-me às autoridades militares e retomei pouco depois o serviço militar. Fiz o serviço militar maioritariamente na Comissão de Extinção da PIDE. Só fiquei liberto das obrigações militares depois do 25 de Novembro.
RC > Quando percebeu que a ditadura tinha sido derrubada, o que sentiu com a família?
AC > Foi uma enorme excitação, porque vivíamos no receio de viver muitos anos fora e no desejo de voltar a Portugal. Acabámos por lá estar cerca de nove meses, foi um prazo muito curto comparado com outras gerações. Fui em julho de 1973 e o regresso deu-se a 3 de maio.
RC > Antes disso, o que o motivou a ser um dos ativistas da Oposição Democrática?
AC > Quando era aluno do liceu de Leiria tive professores notáveis, que estimulavam muito o espírito crítico e recomendavam autores que abriam o pensamento. Ser diretor do jornal dos alunos durante os três últimos anos do liceu também me deu um contacto maior com a realidade, fazia entrevistas, artigos, contactava com colegas mais velhos… Nos últimos anos do liceu aprendi a olhar para a realidade doutra maneira. Quando chego à Faculdade de Direito, em Lisboa, havia pessoas que tinham estado presas no ano anterior e nos intervalos íamos falando e começou aí o movimento estudantil. Em 68/69 estava no secretariado – um organismo que coordenava as atividades das diferentes associações académicas de Lisboa e cuja legalidade o regime não reconhecia. Participei em ações reivindicativas na Faculdade de Direito e como tinha sido, no passado, um dirigente estudantil, fui punido como se fosse dirigente, ao lado dos dirigentes. Fomos proibidos de frequentar qualquer escola durante um certo número de meses calculado para que perdêssemos o ano. Nessa data, houve uma movimentação em Alcobaça, logo na fase inicial da criação da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), que ocorreu muito cedo em Leiria – terá sido uma das primeiras nos primeiros círculos do país onde nasceu a CDE. E a partir de certa altura, quando fiquei liberto das atividades estudantes e integrei ativamente nessa realidade. Em 1969, criou-se uma CDE concelhia, com muitas figuras locais e tínhamos uma participação na CDE em Leiria. É aí que começo a conviver com pessoas como Vasco da Gama Fernandes. A comissão concelhia de Alcobaça propôs duas candidaturas, entre os quais Jorge Silvestre e eu. Distribuímos documentos, fizemos ações de esclarecimento e havia interesse local das pessoas com espírito crítico. Venho a fazer parte da lista de Leiria e depois sou excluído da lista com base numa informação da PIDE de que tinha feito parte de uma organização académica ilegal, que era o tal secretariado. Quando fui excluído houve um abaixo-assinado em Alcobaça, que foi mandado ao presidente do Conselho [Marcelo Caetano] de protesto contra o facto de ter sido cortado com 200 e tal assinaturas. Só soube desse ato de solidariedade várias décadas depois, com o qual me sinto muito grato.
RC > Qual foi o contributo do distrito, em particular do concelho de Alcobaça, para que o 25 de Abril acontecesse?
AC > A participação de Alcobaça naquela fase da Oposição Democrática, em que fui particularmente interveniente, em 1969, é muito relevante. Leiria era uma espécie de capital da oposição, a imprensa dizia que era o “quartel-general”. Era no distrito de Leiria que se realizavam os encontros nacionais, o primeiro realizou-se em Alcobaça. Soube dele através de uma carta de Mário Soares. É um encontro mais reservado. Terá sido, em abril de 1969, a primeira tentativa de fazer listas para as eleições que se apresentavam no horizonte. O episódio de São Pedro de Moel acontece em junho.
“Há práticas e costumes políticas que carecem de reforma significativa”
REGIÃO DE CISTER (RC) > O que trouxe desses tempos antes do 25 de Abril para os cargos políticos que acabaria por desempenhar?
ALBERTO COSTA (AC) > O que vivi deu-me uma experiência concreta daquilo que é a democracia, do que é discutir sobre os problemas, participar, arriscar, defender posições e correr riscos. Não nos podemos esquecer que o salazarismo e o caetanismo tinham desprestigiado muito a prática democrática. Havia uma descrença no método democrático, que envolve pluralismo, defesa de diferentes ideias, controvérsia, debate, escolha e persecução de ideias, sem que se suprimissem as ideias adversas expostas livremente. Essa participação ensinou-me os perigos, os riscos e os custos sociais, políticos e pessoais, que os sistemas repressivos e ditatoriais trazem em relação às pessoas e às sociedades. As democracias abrem caminhos, as ditaduras encerram-nos. A “lavagem ao cérebro”, que antes atuava em complemento com a censura, tem muitas semelhanças com os métodos hoje mais sofisticados e tecnologicamente mais elaborados, que prosseguem os mesmos efeitos. As pessoas fixam-se em determinados ideais e não abrem a mentalidade.
RC > Como assiste a esse crescimento da extrema-direita?
AC > A extrema-direita ou o populismo é uma problemática europeia e universal. Tem a ver com o facto de os sistemas democráticos contemporâneos já serem sistemas com uma certa duração. No passado, as experiências democráticas e ditatoriais criavam um sistema mais agitado, agora dispomos de sistemas democráticos com muitas décadas que vão acumulando insatisfações. Todos os sistemas democráticos, pela sua lógica eleitoral, vão criando promessas e expectativas que estão para lá das capacidades de satisfação e cumprimento. Há uma parte desse descontentamento que é agitado e resolvido no ciclo eleitoral, mas nem todo. Há um fundo que se acumula e desde que apareçam protagonistas ambiciosos, que se pretendam aproveitar desses níveis de descontentamento, com registos mais oportunistas e mais ou menos ideológicos, a realidade está lá. E isso significa que são precisas novas respostas e novas reformas.
RC > Defende, então, que o sistema eleitoral português deva ser revisto?
AC > Existem várias deficiências no sistema que fazem com que o número de problemas, insatisfações, descontentamento, ressentimento, aumente, em vez de reduzir. Seria preciso uma capacidade reformista mais esclarecida e mais intensa e, para isso, existirem compromissos entre as diferentes opiniões democráticas no sentido de encontrar as melhores opções. A realidade atual, na sua complexidade, exige que se tenha a coragem de identificar esses défices de resposta e depois a coragem de encontrar os compromissos para fazer as mudanças. Lamentavelmente houve muita realidade que podia ter efeitos positivos em Portugal, mas tudo se manteve num impasse. Já não me refiro à vida quotidiana, aos salários ou à habitação, nas quais as respostas são extremamente insuficientes. Refiro-me a dois aspetos institucionais: a criação de regiões administrativas democráticas – uma promessa que existe na constituição desde 1976 e que tem sido constantemente adiada – representaria um poderoso ‘chicote’ sobre a realidade territorial no sentido de submeter iniciativas, debates e participação democrática em territórios imensos que hoje não têm representatividade. Não há representatividade acima do nível dos municípios e em simultâneo foram extintos os governos civis. O distrito já só tem relevância como círculo, na medida em que o círculo é definido segundo a delimitação geográfica. O outro ponto tem a ver com o desinvestimento nesse processo da reforma eleitoral e isso ajuda a explicar a realidade.
RC > Considera que falta um banho de ética na política nacional e local?
AC > Há muita má prática e muitas práticas que deviam ser corrigidas. Algumas que tem características criminais, muitas outras que são igualmente censuráveis e que mereciam ser alteradas, nomeadamente no domínio da responsabilização e da prestação de contas. A maior parte dos mandatos políticos não são acompanhados de uma efetiva prestação de contas, as pessoas não são responsabilizadas, não existe uma atmosfera de avaliação pública objetiva do “output” de cada mandato, de cada gestão. Só não sou um grande subscritor da expressão “banho de ética” porque parece dizer que todo o problema é falta de ética dos intervenientes. Uma grande parte dos defeitos e das insuficiências são de natureza política, intelectual, profissional e formativa. Amadorismo, caciquismo… todas essas maleitas identificam problemas que proliferam na vida contemporânea. A incapacidade, a impreparação das pessoas – que depois intervêm nas práticas de compadrio e de amiguismo –, todas essas formas de escolha que não assentam no mérito, tudo isso faz parte de uma galáxia e dentro disso existem condutas que, do ponto de vista moral e criminal, merecem também censura e que ocorrem nesse ambiente. Julgo que os costumes e os princípios políticos carecem de uma reforma significativa porque muitas das práticas que se nos apresentam são chocantes e são uma das grandes alavancas para que o populismo e a extrema-direita se sirva dessas práticas para as atirar aos intervenientes políticos, desde a junta de freguesia à presidência da República.
Abril cumpriu-se com a democracia e a descolonização
Em vésperas de comemorar 50 anos do 25 de Abril de 1974, o ex-ministro não tem dúvidas que Abril se cumpriu
“Os democratas lutavam fundamentalmente por democracia e também por medidas que retirassem o país do atraso em que se encontrava”, recorda Alberto Costa, para quem “a grande promessa, centrada na democracia política, foi ganha”. Outra das grandes promessas tinha a ver com a descolonização ou, nas palavras do alcobacense, “o termo do império colonial”. “No que se refere à democratização e à descolonização, que foram os pilares da revolução, foram concretizados em tempo útil. Já um outro problema é saber se instituições como esta duração e este funcionamento, não carecem de reformas adequadas”, considera Alberto Costa.
Ainda assim, o advogado considera que “há aspetos que são indiscutíveis, do ponto de vista das infraestruturas, da preparação dos portugueses em termos de educação, do desenvolvimento económico e tecnológico, comparado com o que existia”, ainda que continuem a existir enormes problemas nesse domínio.
PERFIL – ALBERTO COSTA
Nasceu no Casal da Amada, na freguesia de Évora de Alcobaça, mas da região apenas tem memória viva das “tertúlias” no café Trindade já em jovem. Foi em Leiria que fez a escola primária e o liceu, formando-se em Direito na Universidade de Lisboa. Integrou o movimento estudantil, foi ativista da Oposição Democrática e candidato à Assembleia Nacional, pelo Círculo Eleitoral de Leiria em 1969, acabando por se exilar em França. Regressaria à política como militante do PS, tendo sido eleito deputado à Assembleia da República em várias legislaturas e ministro da Administração Interna e da Justiça. Nos últimos anos fixou-se na Foz do Arelho