Pode não parecer, mas o ofício de pasteleiro já não é o que era. Que o diga António Saraiva, um dos últimos pasteleiros de Alcobaça “à séria”, que viveu a transição do ofício tradicional para a produção industrial.
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O pai era moleiro e tinha um moinho de vento; a mãe era costureira, o tio um “engenhocas” a trabalhar com o ferro e o avô materno, especializado nas cutelarias, produzia facas e navalhas numa oficina junto à casa onde viviam, no Casal das Penas, uma aldeia da freguesia de Santa Catarina, colada à Benedita. O contexto familiar explica muito das aspirações de António Saraiva. “Tinha a imagem da indústria muito vincada. Não acabei a 4.a classe porque queria trabalhar, evoluir”, recorda.
Aos 12 anos “emigra” para Alcobaça para trabalhar na Pastelaria Toval. De pastelaria, sabia pouco ou nada. “Só conhecia os bolos que a minha mãe fazia em casa”, conta, entre risos. “Fui trabalhar com um senhor, de Barcelos, um bom pasteleiro. O meu primeiro serviço foi fazer um creme de pasteleiro. Tinha de me pôr em cima de um banco porque não chegava ao balcão”, conta António Saraiva, que por ali se manteve durante uns 15 anos. Limpava os tabuleiros, carregava lenha para o forno e preparava as coberturas dos bolos de casamento, os chamados “fundá”. Fazia as frutas cristalizadas para o bolo-rei e até a margarina era feita de forma artesanal. “Um pasteleiro naquela época tinha de saber manusear toda a matéria-prima para a transformar”, nota. “Hoje posso dizer que a pastelaria tradicional era como é hoje os doces conventuais. É tudo manual, não tem nada industrial, tudo feito à base de ovos, açúcar, farinha e amêndoa. Era com esses ingredientes que se trabalhava”, acrescenta.
Foram anos “amargos”. Trabalhava todos os dias, só descansava à terça-feira. Nos primeiros anos, dormia num sótão. “No inverno, tinha de dormir vestido, tal era o frio”. Mas, foi ali que aprendeu tudo o que sabe sobre pastelaria.
A Pastelaria Toval acabou por fechar e arriscou trabalhar por conta própria. Abriu a Pastelaria Saraiva em frente à Automecânica. “Arrendei uma casa a um senhor que me deixou fazer lá um forno a lenha, tipo padeiro”, explica. Os bolos de pastelaria tradicional eram distribuídos pelos cafés e pastelarias. Chegou a ter 24 funcionários. Passados seis anos, mudou a Pastelaria Saraiva para o rossio, onde é hoje a Casa dos Doces Conventuais. “O bolo-rei era o produto mais vendido, com o qual se ganhava mais dinheiro e me deu mais fama”, recorda o pasteleiro, explicando que o facto de saber conservar a fruta lhe permitiu ter vantagem em relação aos concorrentes.
E se o bolo-rei era o produto estrela, a grande inovação do Saraiva chegou com os tachinhos. “Não inventei nada, foi uma adaptação das brisas do lis. Houve uma casa de Leiria muito boa que me pediu para fazer as brisas, trouxeram umas formas e uma receita. Forrei-as com as formas dos tachinhos, transformei a receita e tornei-a mais rentável. Hoje vendem-se milhares e de uma forma industrial”, refere.
A doçura do setor, porém, mudou. “Hoje em dia já quase não há pasteleiros, há operadores de máquinas”, constata. A Pastelaria Saraiva acabou por fechar, mas ainda hoje é comum ver o senhor Saraiva com a bata no Atelier do Doce, um negócio de pastelaria que a filha Catarina e o genro Rui adaptaram aos tempos modernos.