Ainda em tenra idade ofereceram-lhe um carro de corda, mas, em vez de brincar, a primeira coisa que fez foi desmontar o objeto. A história remonta há mais de oito décadas, podendo ser encarada como uma profecia do que haveria de ter sido a vida de Francisco Páscoa.
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Ainda em tenra idade ofereceram-lhe um carro de corda, mas, em vez de brincar, a primeira coisa que fez foi desmontar o objeto. A história remonta há mais de oito décadas, podendo ser encarada como uma profecia do que haveria de ter sido a vida de Francisco Páscoa.
Nascido a 18 de janeiro de 1931, o alcobacense nunca exerceu um cargo político nem foi dirigente de nenhuma associação, mas Francisco Páscoa, mais conhecido por “Chico Páscoa”, é quase uma figura pública na cidade, tanto mais porque foi mecânico durante toda a vida e, por isso, passaram-lhe pelas mãos os veículos de milhares de famílias da cidade.
Começou naquele ofício assim que terminou a 4.ª classe – teria pouco mais de 10 anos –, prestando os primeiros serviços na oficina de reparações mecânica que laborava na Avenida Bernardino Lopes de Oliveira, à época propriedade de José Costa, que viria mais tarde a tornar-se seu cunhado.
Ali passou os primeiros anos profissionais, ainda as viaturas eram movidas a “gás gerado pelos gasogénios, uns aparelhos aplicados nas viaturas e que trabalhavam a carvão vegetal”, explicou ao REGIÃO DE CISTER. Em 1945, e por iniciativa de João d’Oliva Monteiro, que abriu uma oficina na “Rua de Baixo”, o destino levou Francisco Páscoa até à Auto Mecânica de Alcobaça, uma oficina que fazia trabalhos de bate-chapa, pintura, estofador, eletricista, recauchutagem de pneus, estação de serviço, entre outros. Ali trabalhou até 1957.
Ingressou depois no primeiro negócio a título individual, alugando um dos armazéns da Rua Afonso Lopes Vieira, onde trabalhou com todas as marcas vendidas pela empresa Tomaz Marques, Lda, que lhe tinha entregue o serviço de assistência de várias marcas. “Morris, Wolseley, Riley, DKW, Audi, Mercedes…”, especificou.
Já em 1969, o responsável pelas oficinas Mercedes da firma C. Santos, em Lisboa, instalou a então denominada Assessor, na Quinta da Roda, naquele que viria a ser o principal projeto profissional de Francisco Páscoa e de onde saiu apenas em junho… de 2005, já com 70 anos de idade e 30 de casa.
“Conheci muita gente de Alcobaça durante esse período”, relembra o nonagenário, ele que, já depois da reforma… continuou ligado aos motores. “Ainda fui colaborar na firma Neoclássico, em Pataias, que reconstrói carros antigos”. Desde Citroen Arrastadeira 2 CV, MG, Renault Gordini, Volvos, Jaguar e Rolls Royce. “Recordo com muita saudade os ensinamentos e os conselhos que me foram transmitidos pelos excelentes mecânicos da época que, infelizmente, já nos deixaram”, lê-se num dos vários documentos que o alcobacense redigiu, ainda com recurso a uma máquina de escrever e que fez questão de mostrar ao REGIÃO DE CISTER.
Adepto do Sporting e do Ginásio – o sócio n.º4 chegou a ir ver jogos por esse País fora –, refere que um dos desejos que teria cumprido, se fosse hoje, era o de ter “incentivado mais” para que a mulher, então “criada de servir numa casa de uma família boa”, tivesse tido mais “instrução”.
Sobre os demais acontecimentos, Francisco Páscoa mostrou-se conformado com o rumo que a vida seguiu, que lhe permitiu ser pai de dois filhos e construir um casamento já de 61 anos.
Relativamente aos tempos, lamenta que os alcobacenses “não tenham tido interesse em saber mais de Alcobaça”, mostrando o desagrado com a requalificação na zona envolvente ao Mosteiro de Alcobaça. “Havia ali um belo jardim”, lembra o antigo mecânico, hoje com 93 anos.
O futuro, e ainda que a perna direita não queira colaborar, passa por continuar a realizar os afazeres diários. Na sala de casa, que é o seu cantinho, está espelhada – até um cinzeiro da Renault lá está em exibição – a intensa e longínqua história de uma vida dedicada aos carros e motas, que o levou a conhecer “Alcobaça inteira”. garante.
Não é por acaso que continua a ser uma figura muito acarinhada na cidade. Afinal, entre os mais velhos, quem não conhece ou sabe quem é o “senhor Chico Páscoa”?
Carros e motas foram paixão para… a vida toda
Ainda não tinha carta de condução e já conduzia carros e motas, sendo que acabaria por ser a paixão pelos motores que marcaria a sua vida. Já não conduzia com regularidade, mas apenas “entregou” o documento há cerca de dois meses. Chegou a ser detido por conduzir mota sem carta, mas como não havia quartel em Alcobaça, pernoitou no edifício da… Câmara. “Tive de pagar ‘200 e tal escudos’ para sair”, recordou.
Enquanto responsável pela Assessor conheceu vários países do mundo, mas a verdade é que a habilidade não era só nas reparações. “Participava em todas as provas de perícia que decorriam na região”, evocou enquanto mostrava um móvel no qual guarda quase religiosamente todas as taças ganhas e todos os adereços que foi acumulando aquando das suas viagens profissionais e em… lazer.
“Recordo-me de ir com um colega às 24 horas de Le Mans”, acrescentava Francisco Páscoa, que não se conteve quando se apercebeu de que se havia partido um farol de um pequeno veículo que tem no seu armário. “Tem de se colar”, dizia à filha [Isabel Páscoa], que recentemente mudou-se de malas e bagagens para casa do pai, onde cuida do progenitor. “Enquanto for vivo, este armário permanecerá intacto”, brincava a mais velha de dois filhos de um casamento que durou mais de 60 anos. A mulher e o filho mais novo de Francisco Páscoa já faleceram.
Aos 93 anos já não conduz, mas nem isso impede “Chico Páscoa”, uma figura acarinhada por Alcobaça, de saber o destino que quer dar ao carro que ainda guarda religiosamente na garagem. “É para a minha neta”, garantiu.
O entretenimento passa agora por ler jornais e as revistas dedicadas aos motores – prova disso foram os três exemplares bem junto ao sofá onde passa grande parte dos seus dias. Ou isso, ou a ver o Moto GP, evento desportivo que une a família à beira da televisão.
Na vida de Francisco Páscoa, e ainda que o “motor” já não funcione como outrora, é o amor, à família, aos amigos e à vida que escolheu, o “combustível” que “utiliza” para se manter o mais ativo possível.