É conhecido como o último moleiro de Chiqueda. Mas, o “currículo” de Carlos Ribeiro Claro é bem mais extenso: foi motorista de um camião que transportava minérios e de um autocarro de crianças num colégio, produziu e vendeu licores, criou uma sociedade de cerâmica, trabalhou num posto de combustível, fez “biscates” numa oficina de automóveis e, entre outros ofícios, foi cuidador da mulher durante mais de uma década. Aos 92 anos ainda tem força (e saúde) para ser um “empreendedor”.
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O pai, regressado da I Guerra Mundial e depois de uma temporada emigrado em França, mudou-se da Bemposta para Chiqueda para “tomar conta de um estabelecimento”. Acabaria por ter olho para o negócio e aproveitar “a clientela” que vinha ao “grande mercado de domingo” a Alcobaça. “O meu pai nunca chegou a ser moleiro, era comerciante. Negociava em cereais, teve moinhos e moleiros a trabalhar para ele para depois fornecer os clientes e os padeiros que vinham trocar o trigo e o milho”, lembra Carlos Ribeiro Claro, partilhando que o progenitor chegou a ter três moinhos a trabalhar por conta dele entre 1950 e 60. “Fui praticamente criado dentro de um moinho”, confessa o homem, que viria a ser… moleiro.
“Tínhamos uma carroça e uma mula e quando íamos às compras ao domingo eu ficava a guardar a mula. Era também com essa carroça que trabalhávamos no moinho”, conta. Completou a 3.ª classe na antiga escola primária de Chiqueda, que “está praticamente destruída”. Na 4.ª classe ficou sem professora e teve de ir para Alcobaça, onde frequentou a escola do professor Lalanda. “Queria ir para a escola industrial, porque tinha tendência para as máquinas, mas o meu pai não quis”. Foi, então, para o liceu camarário, onde fez o 1.º ano. Seguiu-se o Colégio do Dr. Cabrita, onde conseguiu fazer o exame de 2.º ano. “O meu pai quis que fosse experimentar o 3.º ano e voltei, mas quando apareceu o Inglês fiquei logo arrumado”, acrescenta. Com “15 ou 16 anos”, acabaria por ir trabalhar para os moinhos. A ideia era ir ajudar o moleiro, mas como ele já estava “velhote”, foi Carlos que ficou à frente do negócio até ir para o serviço militar. “Sei que com 16 anos já conseguia pegar num saco de 80 quilos e pô-lo às costas”, recorda. Depois do curso de agentes milicianos em Tavira, o chiquedense foi transferido para Coimbra para dar instrução. “Foi aí que conheci muitos rapazes da Beira Alta. E um dos moços de Canas de Senhorim convidou-me para ir lá ao Carnaval e foi aí que a coisa se arranjou”, brinca, referindo-se ao namorico que viria a dar casamento.
Quando regressou da tropa, o pai já não tinha o moinho. Sem trabalho em Alcobaça, “emigrou”, precisamente, para Canas de Senhorim, onde tinha a… namorada. Com a carta tirada na tropa de ligeiros e pesados, começou a trabalhar nas Minas da Urgeiriça com um camião a transportar minério. Mais tarde, um “senhor”, que tinha uma serração, ficou sem chofer e convidou-o para ir trabalhar com ele. Quando casou, em 1958, ainda voltaria a Chiqueda, “para ver se arranjava qualquer coisa”. “Como não consegui, ala para cima”. Um amigo, que era mecânico de automóveis, para o qual ainda fez uns biscates, aconselhou-o a ir a Nelas porque havia uma vaga de um motorista para conduzir um autocarro para transportar alunos. “Comecei a trabalhar no Colégio Grão Vasco no dia a seguir”, evoca. E por ali ficou.
Já com um filho, o casal mudou-se para a Marinha Grande, pressionado pela mãe de Carlos. Enquanto trabalhava no posto de abastecimento de combustíveis, que era do sogro da irmã, o diretor do Colégio acabaria por lá ir e oferecer-lhe casa, água e luz e 3 contos e 500 de ordenado. A oferta era irrecusável.
Quando o filho mais velho chegou à 3.ª classe, mais uma vez a mãe de Carlos conseguiu trazê-los para perto. “Ela soube que um senhor na Marinha Grande que fazia licores ia vender a fabriqueta”. O resto da história já se está a imaginar. Viria a transferir a fábrica de licores para Chiqueda, quando a mãe faleceu e o pai ficou sozinho. “Tive duas empregadas e um distribuidor em Lisboa”. Depois do 25 de Abril, o clima ficou “muito mau” para a indústria. E em 1979 fechou a fábrica. “Acabaram os licores, mas não fiquei parado”. Foi para a cerâmica. “Fiz uma sociedade. Comprámos um forno e fizemos um edifício em 1982”. Mas foi sol de pouca dura. “Em 1990 a fábrica fechou. A cerâmica sofreu um revés muito grande”, lamenta. Ainda trabalhou para a empresa de decalques que compraria a fábrica, mas depois a mulher sofreu um AVC e a vida de Carlos Ribeiro Claro mudou radicalmente.
Deixou de trabalhar e viveu em casa do filho, em Coimbra, enquanto Celeste esteve no hospital, durante dois anos. “Fez fisioterapia, recuperou a fala e ainda conseguiu andar, com a ajuda de uma bengala. Viemos para nossa casa e estive a tratar dela durante 10 anos. Ela ensinou-me a cozinhar. Lavava e estendia a roupa”, partilha. “Até que foi parar ao hospital e já não veio para casa”, conta, com a voz embargada. Foi nesse período que criou a Amigueda para recuperar os moinhos. Até 2020, manteve-se ativo como moleiro. Nos últimos anos, entretém-se com a horta, com a recuperação do carro antigo e quando não tem nada para fazer… inventa. Até porque os 92 anos só mesmo no cartão de cidadão.
Criou uma associação para recuperar os moinhos
Juntamente com um grupo de moradores, Carlos Ribeiro Claro fundou, em 2005, a Associação de Amigos de Chiqueda, com o objetivo de “preservar o património” da terra. Aquela instituição e a Câmara de Alcobaça assinaram um protocolo e, no ano seguinte, os Amigos de Chiqueda puseram mãos à obra e, com material fornecido pela autarquia, foram capazes de requalificar as Azenhas Mãe d’Água.
“Em 2008, na festa da Espiga, foi a primeira vez que fizemos farinha em 20 anos no moinho velho. A Câmara pôs uma galga e fizemos o resto”, recorda o moleiro, que chegou a receber, mais tarde, cerca de 1.700 crianças num ano letivo naquele moinho, numa parceria com o Parque dos Monges.
“Pusemos aquele moinho a trabalhar e fiquei a trabalhar até 2020, até a associação ainda funcionar. Fazia a manutenção e periodicamente ia lá moer um saco de farinha para dar às galinhas. Tive sempre o moinho a funcionar”, recorda Carlos Ribeiro Claro, triste pelo facto de o moinho estar agora sem utilização. “A propriedade dos moinhos acabaria penhorada, foi vendida em hasta pública e a Câmara adquiriu depois ao indivíduo que comprou…”, salienta. Mas, “pouco ou nada tem sido feito para valorizar este patrimóno”, acrescenta o chiquedense que chegou a participar na Feira de São Bernardo, a convite da Câmara, para mostrar como fazia a farinha.
Apesar dos lamentos, este homem dos sete ofícios mantém a vitalidade, mesmo com a idade que o cartão de cidadão comprova. “Recuperei o carro antigo e outro que está no pintor. Recuperei um terreno e fiz uma horta. Pintei os muros de casa. Não sei estar quieto. Agora vou pintar as portas. Vou também a Alcobaça às compras de manhã”, enumera Carlos Ribeiro Claro. “Não sinto que tenha 92 anos, sinto que tenho aí uns 70 anos”, nota. “Só tomo um comprimido para a tensão arterial. Quando abuso tomo um comprimido para compensar”, graceja o pai de dois filhos, cinco netos e uma bisneta, o que, obviamente, lhe dá muitos anos de vida.