Sábado, Julho 12, 2025
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Contra uma política necrófaga

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A natureza é uma realidade fantástica, não sendo boa nem má. Com efeito, sendo os valores, por definição, construções humanas, prestam-se ao pathos que é próprio do humano: cobrem uma área que vai do nefando ao sublime, do monstruoso ao santo. Mesmo assim, de um ponto de vista positivo (que é aquele que deve presidir às empresas humanas), os valores, pese, a sua equivocidade, não podem estar ausentes do agir verdadeiramente humano.

Voltemos, por agora, a essa realidade, fantástica e soberana, nem boa nem má, que se chama “natureza”. Pois bem, na natureza, existem uns seres, pouco simpáticos para a sensibilidade oficial, mas que desempenham um papel imprescindível na limpeza, higienização e asseio do nosso espaço. São os necrófagos. Embora sempre desconfie da san(t)idade humana, penso que ninguém escolheria como animais de companhia urubus, abutres, coiotes e hienas, escaravelhos e moscas – para não falar de fungos e bactérias… Porém, a natureza, indiferente aos nossos valores – e, parece que, muitas vezes, contra eles – faz o seu caminho com coiotes, terramotos, secas, inundações, bactérias. E, quando calha, vírus – com ou sem corona.

O homem, porém, que é muito melhor e muito pior do que a natureza, que produz Mandelas e Gandhis, Franciscos (de Assis e do Vaticano), Madres Teresas e Aristides, mas também hitlers, stalines , trumps, erdogans, putins, polpots e xijinpings, é capaz de tudo. E, mais astuto que hiena e coiote, é capaz de planear mortandades para engordar em festins necrófagos.

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Não entrando em teorias da conspiração, há, mesmo assim, realidades que dão trabalho ao pensamento:

1) uma superpotência como a China, onde, sem teorias da conspiração, terá surgido a epidemia, terá alguma justificação para exigir pagamentos antecipados, subir os preços, fornecer produtos a Portugal com instruções em mandarim?

2) um tiranete como trump (desculpem o erro, mas este senhor não merece letra maiúscula) pode demitir todos os que não concordam consigo, silenciar todos os jornalistas que colocam questões “desalinhadas”?

3) um case-study de imbecilidade ganhadora (bolsonaro) pode chamar “moleque” a quem se cuida e, “homem”, a ignaros e inconscientes valentões apoiantes?

4) quem, entre nós, vende máscaras, álcool e sabão a preços de ouro, merecia o quê?

Finalmente, seria de perguntar: quem é que, em situações-limite, nos livra do colapso? Dou algumas hipóteses: banqueiros? médicos? futebolistas? enfermeiros? corretores? professores? assistentes operacionais e técnicos? trabalhadores de supermercados? camionistas? agricultores?  comentadores? correios? políticos?

O mais fácil seria ceder ao populismo e escolher o que, nestas circunstâncias, parece “óbvio”. Porém, no dia seguinte à conquista de um campeonato, haverá outras conclusões “óbvias”, assim como, no dia em que os bancos, todos os bancos, devolverem, com juros, o que devem a todos nós, haverá outro “óbvio”. Temos, pois, evidências para todos os gostos.

Assim, sendo evidenciada a necessidade de todos para conseguirmos viver, não será decente dar dignidade a todos? Será que um banqueiro vale alguma coisa, se se mantiver na sua torre de marfim e não emprestar a gente com quem nunca se cruza (nem quer cruzar)? Será que os Messi, Ronaldo, Mbappé… valem alguma coisa sem os que apostam neles, pagando o que não podem pagar pelas suas habilidades? Quem salvariam os médicos e enfermeiros, sem a ajuda dos anónimos assistentes operacionais de saúde?

Ai, Brecht, como estás atual. Embora sabendo que a dimensão do meu “artiguito” já está muito para além do possível, gostaria de vos colocar à disposição esse extraordinário poema “Perguntas de Operário Letrado”. Eu sei que as coisas mudaram. Eu sei que certos conceitos foram proscritos. Porém, lá está, este poema, para mim, ainda é óbvio, permitindo-me fechar a minha argumentação:

 avisados por múltiplos factos, não queremos deixar, de vez, a necrofagia aos animais?

 

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem os nomes dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam os seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China, para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios.
Para os seus habitantes? Até a lendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu,
Viu afogados chamar os seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias.
Sozinho?
César venceu os Gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?

Quando a sua armada se afundou, Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?

Em cada página, uma vitória.
Quem cozinhava os festins?

Em cada década, um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias.
Quantas perguntas.

Bertolt Brecht, (1898-1956)

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