Milhares de crianças e jovens batalham diariamente pelo sonho de se tornarem no próximo Cristiano Ronaldo ou na próxima Kika Nazareth do futebol, no Ricardinho ou na Janice Silva do futsal, no António Livramento ou na Marlene Sousa do hóquei em patins, no Carlos Resende ou na Mariana Lopes do andebol, no Neemias Queta ou na Ticha Penicheiro do basquetebol. Mas, há quem sonhe apenas em ter um equipamento e(m) condições para ser feliz a fazer desporto. Nas histórias que se seguem, que são verdadeiros rasgos de esperança, vamos chamar-lhes Mariana (Alfeizerense), Tiago e André (ambos da Alcobacense), e Pedro (Casal Velho).
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“Gostava muito ser jogadora profissional”, interpelou, de imediato, Mariana. Equipada com uma camisola de Cristiano Ronaldo e pronta para uma jogatana a qualquer instante, a futebolista, de 13 anos, foi perentória a desvendar o maior sonho. O caminho, todavia, não tem sido fácil e só no passado mês de janeiro teve oportunidade de começar a trilhar uma carreira num clube. No Alfeizerense, no caso.
“Desde os 6 anos que vibra com a bola. Aliás, quem for ao quarto dela só vê coisas de futebol e, para aí, umas 20 bolas de futebol”, gracejou a mãe, revelando ao REGIÃO DE CISTER como tudo aconteceu. Leonor (nome fictício) é funcionária de uma IPSS e o ordenado (mínimo) que aufere serve para fazer face às despesas de alimentação e de casa, razão pela qual nunca teve disponibilidade para mais um encargo. Contudo, o otimismo com que encara as dificuldades trouxe-lhe uma surpresa (das boas). “Certo dia, um grande amigo da família, daqueles a quem estarei agradecida toda a vida, perguntou-me se a minha filha podia ir jogar pelo Alfeizerense. Disse-me que já tinha conhecimento da minha situação económica e que apenas tinha de ir a uma reunião com a direção do clube”.
A verdade é que a progenitora não só foi, como no próprio dia arranjaram um equipamento e a filha já estava a treinar com os novos colegas. “Há coisas que jamais se pagam e ver a minha filha ser feliz com uma bola nos pés foi, talvez, a maior alegria que tive nos últimos tempos”, sublinhou a progenitora, visivelmente emocionada, revelando que ainda hoje não sabe quem assegura a mensalidade da filha. “Sei que, se for preciso, os pais dos colegas da minha filha garantem a continuidade dela”, nota.
Mariana é a mais nova de duas irmãs e vive com a mãe em Alfeizerão. As três inseparáveis têm ultrapassado juntas os obstáculos que a vida lhes tem colocado pela frente e é essa ligação que frequentemente tem evitado males maiores. “A Mariana sabe perfeitamente da nossa situação e teve sempre o cuidado de perceber a razão pela qual nunca tinha jogado futebol num clube”, salientou a mãe, num relato que desarmou a postura firme da menina e que ganhou maior expressão quando Leonor abriu o coração: “Já deixei de comer para alimentar as minhas filhas”, recordou Leonor, enquanto limpava os olhos e “esborratava” a maquilhagem. “Dentro do meu quarto, só eu sei o que já passei sozinha”, desabafou.
Desde o início do ano, todavia, Leonor é a maior adepta da filha na bancada. Pelo menos nos jogos em que consegue estar presente, pois o facto de trabalhar regularmente por turnos é impeditivo de ver Mariana marcar golos. E em meia temporada foram seis remates certeiros, números que evidenciam dotes de verdadeira craque. “A minha referência é a Kika [Nazareth]”, disparou Mariana, já ansiosa pelo início da próxima temporada, em que vai continuar a representar o Alfeizerense, um emblema que terá, para sempre, um lugar especial na história desta família.
Infelizmente, situações como a de Mariana e Leonor são frequentes e, nesses casos, urge que o desporto seja bem mais do que habilidade, velocidade e inteligência tática. É imperativo que seja agregador, inclusivo, sensibilizador, motivador de boas práticas. Como comprova o caso de dois irmãos da Alcobacense.
Tiago desde cedo demonstrou uma grande vontade de jogar hóquei em patins e, por isso, ingressou nos amarelos e pretos, cores que veste há várias épocas. O gosto pela modalidade foi transmitido ao pequeno André, irmão mais novo, que também começou a jogar no clube de Alcobaça.
O cenário, contudo, complicou-se durante o último ano quando a mãe terminou o casamento e havia apenas um salário para fazer face a todas as despesas mensais da família. A impossibilidade financeira para suportar duas mensalidades tornou-se num entrave para que os filhos continuassem a praticar e foi então que Teresa (nome fictício) decidiu falar com a Direção do clube com o intuito de prescindir da inscrição de André. “Como é ainda pequeno, não iria sentir tanta falta”, contou, antecipando o revés que acabaria por acontecer.
Na Associação Alcobacense de Cultura e Desporto há (mesmo) lugar para todos e, ainda que os recursos não sejam de sobra, não é por isso que deixam de acolher (ou manter) um atleta na família AACD. Foi o que aconteceu durante quatro meses. “De imediato disseram para manter também o mais novo no clube. Gostavam muito dele e não seria pela questão da mensalidade que ele não iria continuar”, revelou, num momento que revela ter sido muito exigente psicologicamente.
Há sempre quem queira ajudar e a AACD, além de prescindir da mensalidade do atleta, arranjou equipamentos – desde joelheiras, caneleiras e patins –, para que conseguisse continuar a praticar com as mesmas condições do que os colegas de equipa. O clube fá-lo com mais crianças nas mesmas condições.
Para o pequeno, a ingenuidade fruto da idade ainda não lhe permite ter a noção do que o rodeia. O que já não acontece com o mais velho. “Tive de me sentar com o Tiago para lhe explicar as razões”, relatou Teresa, desabafando terem sido momentos de uma “dureza extrema” para uma mãe que só quer ver os filhos felizes.
Aqueles meses, confessou, foram bastante complicados, mas, felizmente, a família tem vivido dias melhores e, aos poucos, tudo tem voltado à normalidade possível. “O hóquei foi tudo. Ajudou-me, a mim e aos meus filhos, num período complicado das nossas vidas e foi, em certos momentos, crucial. Quando não posso ir levar os meninos, costumo dizer-lhes que os ‘primos’ ou os ‘tios’ – treinadores, seccionistas ou outros encarregados de educação – é que os vão levar. A Alcobacense é mesmo uma família”, enfatizou Teresa, recordando o nobre gesto. “Nunca vou conseguir agradecer a sensibilidade e a atitude que tiveram com a minha família”, ‘stickou’ a mãe, que continua a ser a fã n.º 1 nos dias de treinos e de jogos. Agora com um sorriso diferente. Está (genuinamente) feliz.
Do Casal Velho chega o terceiro testemunho. O clube permite, há duas temporadas, que Pedro jogue sem ter a obrigatoriedade de pagar uma mensalidade. Na casa do jovem, que alinha nos escalões de formação do emblema de Alfeizerão, entra mensalmente apenas um salário, que é o único fundo de maneio da família e que tem de chegar para custear todas as despesas, que são limitadas ao essencial. A título de exemplo, as sapatilhas que o menino utiliza são financiadas pelo próprio, uma vez que já tem idade para poder trabalhar durante o verão. É o que faz desde os 13 anos com os “trocos” que vai amealhando. “Nunca me senti inferior aos meus colegas”, confessou ao REGIÃO DE CISTER, dando conta de que até considera ser um ensinamento para o futuro: “comecei a dar mais valor ao que custa a vida mais cedo”, acentuou.
Para a mãe custa (muito) não conseguir proporcionar uma “vida melhor” a Pedro, mas Ana (nome fictício) assume que nunca escondeu a condição financeira ao filho e prefere encarar a situação com esperança: “não é um contexto que me faça feliz, muito pelo contrário, mas acredito que ele está muito mais preparado para fazer face às adversidades que vai encontrar durante a vida”, desabafou, numa ideia que foi corroborada pelo jovem. “Sei o que custa, mas o dinheiro não transmite o valor, o valor somos nós que o damos”, atirou Pedro (mesmo na mouche).
Num período em que tanto se debate qual deve ser o papel do desporto na vida das crianças e dos jovens, estas são aquelas “goleadas de humanismo” que devem servir de exemplo. E que marcam (toda) a diferença!