As histórias de vida de Joaquim Marques e Sandra Fróis levaram a que se tornassem autênticos profissionais na arte de cuidar. Desempenham a missão (quase) a tempo inteiro, 24 horas sobre 24 horas, 365 dias por ano. O desígnio é somente um: cuidar (bem) e proporcionar a melhor vida possível aos que consideram como heróis – leia-se mãe e filho, respetivamente. No próximo domingo assinala-se o Dia do Cuidador Informal – dos que o são de forma reconhecida, mas também dos que desempenham a “profissão” apenas por amor e altruismo –, data que serviu de mote para os testemunhos que se seguem.
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Maria Helena tem 88 anos. A idade avançada já não lhe permite perceber tudo o que a rodeia, ainda que as memórias que remontam aos mercados de Alcobaça e da Nazaré quando tinha 10 anos continuem bem vivas. Todavia, a condição física – sofre de uma profunda debilidade da coluna que a leva a caminhar acorcundada, perdendo o equilíbrio e só se conseguindo movimentar acompanhada – é evidente. É, por isso, que precisa de um cuidador. Coube ao filho a missão: em 2019, Joaquim Marques largou a profissão de consultor comercial para se dedicar “profissionalmente” (ainda que sem remuneração) a cuidar da mãe. O estatuto de cuidador informal principal – que ainda aguarda –, segundo o alcobacense, é pouco empático.
Durante 24 horas por dia, sete dias por semana, é Joaquim Marques quem acompanha a mãe. Seja nas quatro a cinco vezes que se levanta durante a noite para levar a progenitora até à casa de banho, na toma dos remédios, do pequeno-almoço que serve e, por vezes, até da comida que tem de dar à boca da mãe. “Voltaria a fazer tudo exatamente da mesma forma”. Foi assim que começou por explicar todo o processo numa manhã em que o REGIÃO DE CISTER teve oportunidade de acompanhar o caso do filho que tenta proporcionar “o melhor fim de vida à mãe”. “Sei que não faço tudo bem, mas tenho a plena convicção de que o que faço é com a melhor das intenções”, confessa.
E isso mesmo é retratado no facto de a sua vida ser gerida em função da progenitora. “Sempre me disse que queria morrer em casa e sei que, enquanto depender de mim, é isso que irei tentar proporcionar-lhe”, admitiu o antigo consultor comercial, dando conta de que, caso tivesse colocado Maria Helena nalguma das várias instituições preparadas para o efeito, “se calhar já não teria mãe”. “Permitir-lhe que continue na casa onde morou quase toda a vida [na Cela] é um ânimo para ela”, sublinhou Joaquim Marques, antes de a mãe interceder para explicar que “nunca tinha visto tanta batata doce como a que a família teve este ano”. “Algumas pesam cinco quilos”, explicava a antiga agricultora no conforto do sofá, no qual passou toda a manhã munida de línguas de gato, que intercalava com os rebuçados que também guardava religiosamente no bolso. Na rua, chovia intensamente e, por isso, a rotina de ir para a frente da casa ver os carros passar, como tanto gosta, era impossível. Contudo, nem isso atenuava a preocupação constante com a agricultura, a que dedicou a sua vida desde os 13 anos.
A história da batata doce, entretanto corrigida por Joaquim Marques (afinal pesava 2,5 quilos), surgiu precisamente no momento em que o filho exaltava a razão pela qual decidiu abdicar de outra via profissional para se dedicar à mãe. “Durante toda a vida, cuidou do marido (que ficou paralisado nos membros inferiores depois de um acidente), do pai (com paralisação parcial na sequência de um AVC) e do tio (invisual). Criou dois filhos. Tudo isto, por vezes, com escassas condições financeiras. É tempo de retribuir tudo o que ela fez durante a sua jornada e dar-lhe oportunidade de viver os últimos dias na casa que sempre conheceu”, acentuava. Mesmo que, por vezes, essa responsabilidade seja prisioneira de outras experiências de vida. “Abdico de algumas coisas em prol dela. Há dias que tenho de pedir à minha irmã [que é vizinha e uma ajuda essencial nos cuidados diários com a mãe] e dizer que vou desaparecer por umas horas”, relatava, dando outro exemplo tão simples quanto rotineiro: “se formos ao supermercado, faço metade das compras e largo o carrinho num canto apenas para ir ao carro ver se está tudo bem, voltando depois ao supermercado para finalizar as compras”.
O caso relatado serve precisamente para dar a entender como se desenrola um dia normal daquela família. “Se estiver num dia bom, consigo distrair-me a ler um livro ou a cuidar da agricultura, mas tenho de estar sempre atento para ver se não tenta levantar-se sozinha do sofá”, contava o alcobacense, de 60 anos, revelando que em dias soalheiros a mãe ajuda nas pequenas tarefas como debulhar feijão ou escarolar milho, que funcionam como uma terapia ocupacional. “Se for um dia mau, então o cuidado tem de ser ainda maior”, notava.
Depois de uma vida repleta de trabalho, sobretudo no campo e de sol a sol, de criar e cuidar da família, a velhice de Maria Helena (que ilustra os demais casos) é vivida com a certeza de que a jornada na vida plana não tem sido em vão. Mesmo que, fruto da longevidade, já não tenha a capacidade de o percecionar.
E se durante a manhã o cenário foi o de um filho que cuida da mãe, ao fim do dia os papéis inverteram-se. Na casa de Sandra Fróis (cuidadora informal não principal) o dia-a-dia é planeado tendo em conta o filho Salvador, que tem 15 anos e 98% de incapacidade. A deficiência de que padece carece de diagnóstico, sendo por isso conhecida como doença rara, todavia, em casa do vestiariense não há muito tempo para pensar nas causas. A atenção centra-se nas soluções para lhe permitir ter uma vida plena dentro daquilo que consideram tangível. “Temos de estar sempre de olho nele. Primeiro porque é um traquina, mas também porque não sabemos o que pode acontecer”, contava a mãe a “meio gás” enquanto deitava o olho às brincadeiras no corredor de casa. “É uma vida inteiramente dedicada a ele”, complementava, antes de explicar a rotina diária. Há quase 23 anos.
Salvador é o segundo de dois filhos. O primeiro (João Bernardo) padecia do mesmo grau de incapacidade e faleceu há seis anos, mas permanece(rá) presente na casa daquela família, onde o seu quarto continua a ostentar uma placa com o seu nome.
Sandra Fróis acorda por volta das 6:30 horas, prepara o pequeno Salvador para mais um dia de escola, tarefa que é terminada pelo pai, antes da avó, que vive na moradia imediatamente ao lado, chegar para aguardar pelo táxi que levará o menino à EB 2/3 D. Pedro I, em Alcobaça, onde passa o dia.
O facto de ter este apoio escolar permite que Sandra Fróis, de 48 anos, continue a desempenhar (também) a profissão de carteira, em Alcobaça. Ainda que também seja considerada cuidadora informal. Já o pai [João Tomás], de 54 anos, é funcionário de uma empresa na Benedita, e o apoio fundamental para a concretização desta missão familiar. Assim como a avó Ilda, que fez questão de ir dar um beijo ao neto durante a reportagem do REGIÃO DE CISTER, e de afirmar, com orgulho, que é o “amor de uma vida”. Maior do que qualquer outro, salientou.
Às 16 horas, Salvador chega da escola. As primeiras duas horas são inteiramente dedicadas a mãe e filho. “É um momento que faço questão de termos diariamente porque lhe faz bem. A ele e a mim”, confidenciava a mãe, sempre com uma alegria contagiante na voz. Isto quando o tempo não permite que Salvador aproveite o jardim de casa para andar no trator ou no triciclo (adaptados), por vezes, até ser de noite e hora de jantar, momento em que necessita de maior ajuda. Da mãe, do pai ou da avó, sempre presentes para colaborar nas tarefas diárias essenciais. O banho, por exemplo, é dado pelos pais. Assim como a hora de ir dormir, em que os progenitores vão juntos preparar Salvador para uma noite de descanso, uma vez que usa fralda e é necessário colocar duas talas nas pernas do menino. Só depois disso os pais vão jantar e tratar dos restantes afazares da casa.
Para Sandra, todo este caminho tem sido uma aprendizagem e a confirmação de que “Deus só coloca pela frente as batalhas que sabe que consegue superar”. “Tenho a certeza que tudo faço para conseguir que o meu filho seja feliz”, frisou, enaltecendo que o mesmo sentimento lhe invadia a alma quando o fazia com João Bernardo, o irmão de Salvador. “Enquanto houver estrada para andar…”, sublinhava.
A mesma convicção é partilhada por João Tomás. “Voltaria a fazer tudo igual. Tentamos todos os dias que o Salvador seja feliz. E, à maneira dele, julgamos que é”, garantia o progenitor, com um brilho nos olhos quando falava dos filhos. Afinal, na casa desta família os heróis têm cinco nomes diferentes: João, Salvador, Sandra, João e Ilda.
Quanto às “Sandras”, aos “Joaquins” e aos restantes cuidadores (reconhecidos e não reconhecidos) chamar-lhes-emos os “heróis que cuidam de heróis”. Porque tão heróis são os que cuidam como os que, pela história de vida, são cuidados.
Burocracia, morosidade nos processos e falta de apoios são preocupações da Associação Nacional de Cuidadores Informais
A elevada burocracia, a morosidade nos processos de reconhecimento do estatuto e a falta de implementação das medidas já legisladas foram algumas das principais preocupações demonstradas pela Associação Nacional de Cuidadores Informais em entrevista ao REGIÃO DE CISTER.
“Uma das nossas grandes preocupações é a burocracia do processo. A morosidade nos despachos. Devido à enorme quantidade de documentos, os processos vão e vêm e nunca mais têm conclusões. E depois existe todo o conjunto de legislação que acaba por não dar direitos aos cuidadores. Há legislação, mas não há implementação das medidas e as pessoas acabam por ficar na mesma”, explicou Maria dos Anjos Catapirra, vice-presidente da associação, ao REGIÃO DE CISTER, dando conta de que “o estatuto foi aprovado, mas não foi devidamente divulgado”. “Nunca houve interesse por parte do Governo de fazer a devida divulgação do Estatuto de Cuidador Informal. Para além disso, as poucas pessoas que sabem que existe, sentem-se defraudadas porque a lei existe, mas as medidas não estão implementadas”, relatou, revelando que, dois anos após a saída do decreto regulamentar, “a única medida que está a ser implementada é o subsidío de apoio ao cuidador”, que abrange apenas 5.200 cuidadores informais de todo o país.
De acordo com os dados divulgados no passado mês de setembro, existiam 16 mil cuidadores reconhecidos – em que 50% são cuidadores informais principais e outros 50% foram reconhecidos como cuidadores informais não principais –, todavia, acredita-se que o número de cuidadores informais não reconhecidos possa ser de 200 mil pessoas. O REGIÃO DE CISTER solicitou ao Centro Distrital de Segurança Social de Leiria os números referentes aos concelhos de Alcobaça, Nazaré e Porto de Mós, todavia, até à data de publicação desta reportagem não obteve qualquer resposta.
O cuidador é considerado toda a pessoa que assume como função a assistência a uma outra pessoa que, por razões tipologicamente diferenciadas, foi atingida por uma incapacidade, de grau variável, que não lhe permite cumprir, sem ajuda de outro (s), todos os atos necessários à sua existência enquanto ser humano.
Significa prestar apoio à pessoa cuidada, em articulação com os profissionais de saúde e garantir-lhe, entre outros deveres, a satisfação das necessidades básicas e instrumentais da vida diária. Promover um ambiente seguro, confortável e tranquilo, incentivando períodos de repouso diário, bem como de lazer; assegurar as condições de higiene da pessoa cuidada, a alimentação e hidratação adequadas são outros pontos elencados na longa listagem de deveres que deve respeitar um cuidador informal.
Mas também há direitos, tais como receber formações para melhorar o desempenho do papel de cuidador e beneficiar de períodos de descanso que visem o seu bem-estar e equilíbrio emocional. Além disso, se for cuidador informal principal, tem ainda direito a um subsídio de apoio, caso estejam reunidas as respetivas condições de atribuição que devem ser requeridas através do Regime do Seguro Social Voluntário.
O caso de Joaquim Marques é exemplificativo desta situação, uma vez que o processo para tornar-se cuidador informal principal se tem arrastado ao longo do tempo. O antigo consultor requeriu o estatuto por cumprir os requisitos legais para beneficiar do mesmo, no entanto, continua sem o devido reconhecimento.
“Falta alguma sensibilidade para este tipo de casos. Não só a nível jurídico, no qual há muitos critérios a melhorar, mas também na dimensão que a profissão tem a nível nacional. Os cuidadores informais vivem muito isolados e, consequentemente, torna-se difícil terem força para conseguir tornar todo este processo mais clarividente, simples e rápido”, lamentou.
Além da questão da atribuição dos apoios – que a Associação Nacional de Cuidadores Informais considera “desadequada” face à realidade –, Maria dos Anjos Catapirra alerta também para “a legislação laboral que não dá apoio aqueles que são cuidadores informais não principais”. “Ao fim de quatro anos, continua-se sem apoiar quem cuida e trabalha em simultâneo. As ausências são limitadíssimas porque são 15 dias que já estavam na lei mais cinco dias, e tudo isso sem remuneração. Assim como o trabalho a tempo parcial, o horário flexível, o direito a não fazer turnos. Tudo isto está escrito, mas as pessoas ficam sem dinheiro e sem ordenado…”, lamentou a dirigente, relembrando que está a decorrer uma iniciativa legislativa, que contabiliza cerca de 2.000 assinaturas, e que surgiu para que uma série de pontos da atual legislação, com as quais a associação não concorda, seja debatida na Assembleia da República. No entanto, são precisas 20 mil assinaturas.
Entretanto, no próximo sábado, realizar-se-á o 5.º Encontro Nacional de Cuidadores Informais, que vai ter lugar no Auditório Municipal Cinema Charlot, em Setúbal. A participação é gratuita e em formato misto (presencial e online).
Ufav disponibiliza gabinete de apoio ao cuidador informal
De forma a apoiar os cuidadores, a União das Freguesias de Alcobaça e Vestiaria disponibiliza, entre as 14 horas e as 17 horas de sexta-feira, um gabinete de apoio ao cuidador informal. O serviço está preparado para ajudar no enquadramento e na requisição do estatuto, esclarecendo ainda quais os direitos e deveres necessários.