Gostava de ter sido militar, mas, aos 11 anos, começou uma carreira como sapateiro. O beneditense Luís Goucha Fialho seguiu as pisadas do pai e vê agora os dois filhos a “calçar” o negócio, que sustentou a família ao longo de quase cinco décadas.Os eventos na freguesia de Serro Ventoso têm um denominador comum: Carminda Alves. Faz queijos de cabra com a mesma perícia que cozinha um cabrito inteiro ou cose pão para centenas de pessoas. A mulher, que dedicou toda a vida à agricultura e ao pasto para sustentar a família, tem 77 anos (faz 78 no próximo dia 29) e continua a arregaçar as mangas ao trabalho cheia de genica e vontade de ajudar quem lhe pede ajuda.
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Nascida e criada na Bezerra, em pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, Carminda Alves parecia ter o destino traçado na agricultura, atividade que sustentava os pais e os avós. Mas, sendo filha única e enquanto foi solteira, não foi bem assim: “os meus pais não queriam que andasse por aí e por isso quando acabei a escola puseram-me a aprender a costurar para fugir à agricultura”, conta a septuagenária. “Enquanto fui solteira os meus pais trataram-me sempre como uma menininha, fui muito protegida”, confirma a antiga costureira, que ainda hoje não perdeu o jeito com as linhas e as agulhas. “Fazia blusas, saias, roupas… qualquer coisa que me mandassem fazer. Não era como é agora, que já se compram as coisas feitas”, lembra Carminda Alves, que só ocasionalmente sujava as mãos para ajudar os pais no trabalho. “De vez em quando lá podia ir um dia ter com os meus pais quando eles chegavam com os carros de bois, mas sempre perto da porta de casa”, explica a serrana, admitindo ter sido uma “menina muito estimada”.
Dos tempos da juventude, guarda as idas à missa e as tardes de domingo que eram passadas na rua à conversa com “as raparigas e os rapazes”. “Não podia ir a um baile sozinha, a minha mãe ia sempre comigo”, lembra. “Contam-se pelos dedos de uma mão os beijos que dei ao meu marido antes de casar”, confessa. “Fui eu que fiz os cortinados para a minha casa e era costume na véspera do casamento as colegas virem enfeitar a casa da noiva, mas os laços do cortinado da casa de banho não estavam à minha vontade e eu lá fui ajeitá-los, com um candeeiro a petróleo. Foi quando o meu marido tentou roubar-me um beijo, mas a minha mãe vai logo ‘não têm tempo amanhã?’, veja lá a tristeza que não era”, recorda a mulher, que viria a casar-se quando tinha 22 anos.
O marido foi depois para a tropa e por lá ficou durante três anos. Quando regressou, o casal decidiu construir casa ao lado da casa dos pais. “O meu marido foi trabalhar para a construção civil, eu fiquei em casa, mas a vida mudou logo…”, constata Carminda, que começou a trabalhar com os pais nas fazendas.
De dia trabalhava no campo e à noite começou a fazer queijos. “Os meus avós já tinham 70 cabras e faziam muito queijo. O meu pai herdou o negócio, a minha mão ensinou-me como se fazia e depois fiquei eu a fazer os queijos”, conta. “Não se esqueça que aqui não havia supermercados, ainda agora não há aqui nada e naquela altura muito pior”, nota a serrana. “Vinham pessoas cá a casa pedir o queijo porque não tinham outra coisa”, lembra Carminda Alves, que tirava o leite das cabras à noite para fazer os queijos e conseguir “amealhar alguma coisa de dinheiro”.
O desejo de ser mãe foi concretizado com a ajuda de tratamentos, algo pouco comum à época. “Eu e o meu marido sofremos bastante para conseguir ter a primeira filha… mas lá conseguimos. Quando nasceu a minha menina pesava 1,700 quilos”, recorda a agricultora, acabando por engravidar uma segunda e uma terceira vez. “O meu marido lá me disse para tentarmos uma segunda vez, veio outra menina, muito grande e muito bonita, e depois ainda quis experimentar para ver se vinha o menino e veio o meu menino. São a minha maior alegria”, refere a avó de 8 netos e se “Deus quiser” bisavó de uma menina a partir de outubro.
Apenas a morte do marido lhe rouba o sorriso. Carminda Alves perdeu o marido num acidente de trator, tragédia que ainda hoje tem gravada na memória. “Há mortes e mortes e a do meu marido custa muito a aceitar”, confessa a septuagenária, admitindo que é o trabalho que lhe dá “vida para continuar”. “Enquanto andar por aí não fico em casa a pensar”, nota.
Nos últimos 15 anos, Carminda Alves tem colaborado com a Vertigem – Associação para a Promoção do Património e é também presença assídua na Feira das Velharias em Porto de Mós com o pão, queijos, mel, bolo de ferradura e às vezes chouriças. A vendedora é hoje em dia solicitada para todos os eventos de Serro Ventoso e até de outras freguesias vizinhas. “O presidente da Junta está sempre a pedir-me coisas para isto ou para aquilo”, brinca Carminda Alves, que desta vez aceitou partilhar a sua história com o REGIÃO DE CISTER.
Há 15 anos a trabalhar para a associação Vertigem
Sem nunca largar a fazenda, os animais de criação (ainda tem coelhos, galinhas e cabras) e os queijos, Carminda Alves foi desafiada pelo presidente da Vertigem – Associação para a Promoção do Património para dar uma “ajuda” no acolhimento dos estrangeiros à freguesia de Serro Ventoso através dos projetos que a associação desenvolve. Hoje é a “cozinheira de serviço” e uma espécie de “assistente” do presidente da associação.
“No início não sabia se ia para lá. Não sei falar as línguas estrangeiras, mas o Rui [Cordeiro], que só conhecia de vista, dizia que me ia desenrascar. Fui trabalhar para lá e já lá vão 15 anos”, conta Carminda Alves, que começou por tratar das refeições dos participantes nas atividades da associação Vertigem.
“Comecei a tirar o leite às cabras alentejanas para fazer os queijos e depois comecei a fazer pão caseiro e são também esses produtos que levo para a Feira das Velharias em Porto de Mós no primeiro domingo do mês”, explica a colaboradora da Vertigem, que também ajuda o presidente da associação ambientalista “a tratar do mel, a apanhar o abrunho e o medronho para fazer os aguardentes e os licores”. As marcas que tem nos braços, e que sinaliza, são prova desse trabalho árduo.
“É muito difícil se não trabalhar, só tenho a meia reforma do meu marido. Vou aqui e acolá e também vêm pessoas a casa para comprar aguardentes, mel e licores e assim consigo ganhar uns eurozitos”, explica Carminda Alves, que vai dividindo o tempo entre a associação, as “bricolages” de casa e as encomendas que vai tendo. “Telefonam-me a pedir os queijos, o pão, os bolos e eu faço tudo aqui em casa e as pessoas vem depois cá buscar”, elucida a serrana.
Das análises médicas, apenas os diabetes não dão tréguas. Foi operada há um mês às cataratas – “agora já vejo o monte da serra” do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros –, e apenas se queixa das pernas e os pés. “tenho de me conformar que é da idade”. “O médico manda-me comer legumes salteados, mas assim também não me sustento”, brinca a septuagenária, que promete só parar quando morrer.