Se perguntar a qualquer nazareno(a) quem é Júlia Veríssimo a resposta pode não ser muito concreta, mas se perguntar pela Júlia das Flores toda a gente o(a) encaminhará para a Rua Sub-Vila. A florista mais antiga em atividade da Nazaré é um verdadeiro “ícone” da vila, que encontrou nas flores um jardim de esperança, depois de ter ficado viúva aos 27 anos. Hoje, aos 74 anos, a comerciante mantém a casa aberta, com a filha, e “rega” todos os clientes com um sorriso e uma palavra amiga diariamente.
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“Cresci numa família que vivia mais ou menos, não era das famílias mais pobres da Nazaré”, conta “Julinha”, como era carinhosamente tratada em criança. O pai era embarcado e a mãe vendia peixe. Trabalhavam para sustentar os filhos. Júlia era a mais nova, mas volvidos 14 anos apareceu mais um irmão, “que infelizmente morreu cedo”. “Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida mais ou menos boa, que me permitia, felizmente, andar na escola com sapatos e sandálias, que até emprestava às colegas que não tinham”, conta a mulher, lembrando as dificuldades dos anos 50 e 60. “A vida na Nazaré era muito traidora, o inverno era muito prolongado. A Nazaré era muito pobre porque era do mar que os nazarenos viviam. Não havendo peixe, estava tudo isolado”, recorda Júlia, que conhecia de perto essa realidade. O avô tinha um barco e “umas redes de arte xávega”. “Ele tinha muita pena dos camaradas, fazia sempre um mealheirozinho no verão para ajudar os camaradas de inverno”, diz. “Ainda me lembro que havia crianças que não podiam ir para a escola porque não tinham bata, ou porque estava a chover, e quem tinha duas emprestava uma a quem não tinha”, partilha a nazarena dos sete costados.
Andou nas “escolas-novas” até completar a 4.ª classe. Teve a professora Maria Gomes, “que era do Alentejo e que acabou por ir embora porque não gostou da Nazaré”, e a “Dona Beatriz”, a quem ainda hoje chama professora. “O meu irmão mais velho foi estudar e quando eu e a minha irmã fizemos a 4.ª classe, o meu pai chamou-nos e disse-nos: ‘Gostava de comprar uma casinha, mas se quiserem estudar não a posso comprar. Agora escolham’”, conta Júlia, antecipando qual foi o desfecho. “Antigamente só se fazia a 4.ª classe, quando se acabava ou ia-se para a costura ou para o peixe com as mães. A minha irmã foi trabalhar com a minha mãe para o peixe e eu fui para a costura”, atira Júlia Veríssimo. “Até gostava de estar em casa, mas não era bem aquele sonho que queria”, reconhece a mulher que viria a costurar até se casar. “Julinha” engraçou com o que viria a ser o seu “amor eterno” numa matiné. “Havia os bailes e as matinés à tarde ao domingo. Eu já o conhecia, ele era da Nazaré, mas foi numa matiné que lhe achei piada. Os meus pais é que não gostaram muito… talvez por ser novinha, gostavam que estivesse em casa mais tempo”, elucida a nazarena. É que “quem não casasse e namorasse com 20 anos já não casava”, explica Júlia, entre risos. “Na minha juventude, com 20 e tal anos já era velha”, acrescenta.
Aos 19 anos casou e trocou a costura pelo peixe. “Fui trabalhar com a minha mãe para o peixe porque se ganhava mais dinheiro”, explica Júlia, que vendia na Nazaré e também em Alcobaça. “Adorava vender, gostava do contacto com o povo. Se não tivesse ficado viúva não tinha vindo para as flores”, afiança. Aos 20 anos viria a ser mãe e pouco tempo depois o marido foi para o Ultramar. Já com dois filhos, acabaria por viver o momento mais trágico da sua vida. Júlia perdeu o marido, na sequência de um acidente rodoviário.
Foi, na sequência desse trágico momento, que irmão de Júlia a convenceu a abrir uma casa de flores. “Sempre gostei muito de flores, em minha casa havia sempre uma planta, ou uma jarrinha”, conta.
Quando o meu irmão pensou nisso, não aceitei logo, mas depois acabei por aceitar porque tinha dois filhos para criar e na altura estava doente quando saí do peixe”, recorda. Os clientes começaram a tratar Júlia por “Júlia das flores” e assim ficou. Já lá vão 44 anos. A filha acabaria também por se juntar ao negócio, depois de completar a 4.ª classe. “Tenho a agradecer muito ao Silvino da agência funerária. Ele exigiu muito de mim e hoje devo-lhe essa atenção do fundo do coração. Eu ia muito para o cemitério, ele ia buscar-me e dizia-me que a minha vida era lá em baixo. Quando o meu marido morreu pensava que também ia embora”, confessa.
Nos últimos anos, entre “casa, flores, flores e casa”, viu crescer duas netas e mais recentemente viu a família crescer com o nascimento de uma bisneta. Mas, Júlia tem ainda três netos de coração indianos. “Vieram para cá sem me conhecer de lado nenhum, perguntaram-me se sabia de alguma casa para alugar e eu ajudei-os. Já estão aqui há seis anos. Comem connosco à mesa, vou levar a menina, que veio para cá com um mês, à escola, e são uma família de coração”, garante a Júlia das Flores, que fintou o destino, semeando amor.
Mãe e filha gerem florista há 45 anos na Sub-Vila
Depois de ter ficado viúva aos 27 anos, o irmão mais velho de Júlia Veríssimo desafiou-a a trocar o peixe pelas flores e a abrir um negócio na Rua Sub-Vila, na Nazaré, como florista. Em dezembro de 1979, abriu as portas da “Júlia das Flores” para fazer os seus primeiros arranjos.
“Antes de ter perdido o meu marido já gostava muito de flores e tinha algum jeitinho. E depois passei a frequentar muito o cemitério e a dar ainda mais importância às flores. Tive um ano em casa sem conseguir fazer nada… e foi por isso que o meu irmão me incentivou a abrir uma loja de flores porque não havia quase nada na Nazaré”, lembra a nazarena.
Acabaria por ser ali mesmo ao lado que, em dezembro de 1979, abriu o estabelecimento comercial com o objetivo de sustentar os filhos. Foram tempos difíceis. “As primeiras flores acabaram por morrer porque ainda não me sentia preparada para voltar a estar com as pessoas. Depois lá fui fazendo o que sabia e aprendendo“, confessa Júlia Veríssimo. “Demorava muito tempo a fazer os arranjos ou as coroas.
rabalhava de dia e de noite para ter as flores prontas às horas que o cangalheiro me pedia”, conta a florista, que acabaria por “recrutar” a filha para a ajudar no negócio. A Paula… das Flores chegou a faltar às aulas para ir ao mercado de Alcobaça. “Tinha 9 anos quando comecei a vir para aqui e aos sábados ia para o mercado”, conta a mulher que nunca fez outra coisa da vida, senão arranjar e vender flores. “Até ter a carta de condução apanhava boleia das mulheres do peixe. Depois no mercado chegavam a colocar uns caixotes por baixo dos pés para poder chegar ao balcão“, recorda Paula Veríssimo.
Na loja também não havia mãos a medir, entre funerais, casamentos e batizados. “Antigamente não havia o hábito de comprar flores para oferecer”, adianta a nazarena. “Os homens tinham vergonha de vir comprar uma flor para oferecer e muitas vezes pediam para esconder a flor numa coisa qualquer”, conta Júlia.