Gostava de ter sido militar, mas, aos 11 anos, começou uma carreira como sapateiro. O beneditense Luís Goucha Fialho seguiu as pisadas do pai e vê agora os dois filhos a “calçar” o negócio, que sustentou a família ao longo de quase cinco décadas.
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Nascido no seio de uma “família pobre”, com quatro irmãos (todos foram sapateiros mas nem todos seguiram a arte) e duas irmãs, o beneditense viu o destino traçado desde cedo: “Fui para sapateiro porque era o que o meu pai fazia. Era um miúdo e tinha de obedecer ao meu pai, não tinha voz ativa para fazer outra coisa… Ainda cheguei a dizer que ia para mecânico, mas ele insistiu e quase fui obrigado a ser sapateiro”, conta Luís Goucha Fialho, que acompanhou o pai na fábrica onde o progenitor trabalhava depois de completar a antiga 4.ª classe. Como vivia na localidade dos Candeeiros e não tinha transporte para se deslocar, aquela foi a única alternativa para ajudar a sustentar a família.
O homem, de 69 anos, aprendeu o ofício, de fio a pavio, ao longo de três anos. “Quando tinha uns 14 anos já sabia fazer um par de sapatos de forma manual”, conta o sapateiro, reconhecendo que esta profissão “não é tão fácil como parece”. “Tem muitos pormenores e muitos detalhes que não é para qualquer um”, reconhece Luís Goucha Fialho, admitindo que “herdou” as mãos da mãe. “Ela era costureira e tinha umas mãos perfeitas… não é para me gabar, mas julgo que tenho um bocadinho das mãos dela. Tudo o que fizer tem de ser bem feito”, argumenta.
A par do trabalho na fábrica, Luís Goucha Fialho ajudou a cuidar dos irmãos. “Criei os meus irmãos mais novos e os meus dois irmãos mais velhos criaram-me a mim. Vinha da escola e ficava a tomar conta dos meus irmãos”, recorda. Tinha também de ajudar a mãe, que tratava das lides domésticas e que fazia de tudo para que não faltasse de nada aos filhos: “Não tínhamos água para lavar, tínhamos de ir aos lagos, às lagoas, aos rios ou às bicas”, conta o terceiro filho mais velho, que tinha de apanhar batatas, arranjar lenha e ajudar a coser o pão. “A minha mãe tinha de trabalhar para a, b e c para ver se lhe davam uma bilha de água. Lembro-me que ela se servia de um forno de uma senhora para quem costurava. Era uma vida muito pobre”, lembra o beneditense, contando que eram colocados 11 pães no forno, que tinham de dar para a semana toda.
Mas nem as dificuldades o fizeram desistir de cumprir o sonho de ser… militar. “Fui tirar o 2.º ano para ir para a tropa com algumas habilitações e ficar lá. Só que fui chamado antes de acabar o exame ao ser chamado e não tinha as habilitações para ficar na tropa. Não correu como quis… tive azar de ser chamado no primeiro turno. Se tivesse sido chamado no último turno tinha ido para furriel e já ganhava umas coroazecas…”, lembra Luís Goucha Fialho, que ainda chegou a inscrever-se para GNR. “Recebi uma carta a perguntar se queria ir para o posto de Alcobaça da GNR. Mas, à data, eles andavam a pé, e aquilo não era para mim. Rejeitei porque o que queria era ser militar e ir para Lisboa”, afiança o beneditense, que acabaria, mais tarde, por cumprir o serviço militar.
Antes disso, trabalhou ainda na Fapocal, na Benedita, com o pai, o antigo patrão e um dos irmãos. “Esse antigo patrão comprou uma carrinha e vínhamos todos para a Benedita. Aos 18 anos, quando tirei a carta, eu é que apanhava a malta para ir trabalhar”, recorda o agora reformado.
Quando regressou da tropa, voltou para outra fábrica e por lá esteve “cinco ou seis meses”. “No fim de aprender já queria aprender outra coisa”, admite o sapateiro, que aos 22 anos decidiu abrir um negócio próprio. “Quando abri a minha fábrica foi quando percebi que tinha condições para saber fazer tudo. A maior dificuldade foi saber comercializar. Não sabia fazer bem as contas, guiava-me pelos outros”, avança o empresário. Fez “muitos artigos”, desde “botas de camurça, botas de trabalho a sandálias romanas”, conseguindo manter-se no negócio, que chegou a empregar uma dezena de colaboradores.
Os 69 anos de vida de Luís Goucha Fialho foram, sobretudo, dedicados ao trabalho. Mas, houve ainda tempo para jogar à bola, primeiro nos Candeeiros e depois no Beneditense. “Joguei até aos 60 anos na velha guarda”, atira o sapateiro, que chegou a ir jogar a Itália, França, Inglaterra e Açores. “Não era um jogador por aí além, mas jogava. Não tinha dinheireco nem tinha tempo. Marquei muitos golos, só que para ser federado tinha de treinar durante a semana e jogar ao domingo e eu tinha muita coisa para fazer”, lamenta o beneditense. Feitas as contas, perdeu-se um militar e um jogador de futebol, mas vingou na vida um (grande) sapateiro.
Uma empresa que se tornou segunda casa da família
Quando, aos 22 anos, Luís Goucha Fialho abriu a empresa de calçado na Benedita estava longe de imaginar que, quase cinco décadas depois, o negócio seria também “alimentado” pela mulher e pelos dois filhos.
“Nunca fiz muita força para eles virem para aqui trabalhar”, admite o beneditense, mostrando-se satisfeito e orgulhoso pela vontade dos filhos em agarrar o negócio da família.
O filho mais velho foi ainda mais longe e criou uma marca de sandálias (Goucha’s handmade), aliando a experiência à modernidade, que está a ser um fenómeno de vendas.
A mulher (casou-se quando tinha 30 anos) acabaria também por integrar os quadros da empresa. “Ela era costureira de roupa e veio trabalhar para a fábrica”, conta. Mais tarde vieram também os filhos. “Temos uma empresa familiar e todos contribuem com o que sabem fazer melhor”, afirma.
Apesar de já estar reformado, não há dia que Luís Goucha Fialho não esteja na fábrica a trabalhar. “Sou um pronto socorro, onde estiver mais atrasado é onde vou”, conta, entre risos. “Gosto de trabalhar. O trabalho é uma terapia, estou entretido e no fim de trabalho ainda tenho tempo para as minhas coisas”, conta o reformado, que sofreu um enfarte há cerca de quatro anos. “Fiquei sem força, desmaiei e estive no hospital um mês, desentupiram-me algumas artérias e felizmente fiquei bem. Recentemente voltei a desentupir mais algumas e sinto-me bem, como um rapaz novo”, descreve.
Reconhece que “se não fossem os filhos” dificilmente a empresa sobreviveria, até porque “vivem-se tempos difíceis” no setor do calçado. “Olho para os pés das pessoas, dos 10 aos 80 anos, e tudo calça ténis. Mas o que fazemos na Benedita não são ténis”, lamenta o beneditense, que, até se reformar, “de segunda a sexta-feira estava agarrado ao trabalho como os empregados” e ao “fim de semana saía para fazer as vendas e as entregas”.
Mais recentemente o que tem ajudado é o “sapato de senhora” e o “novo fôlego” que o filho Isac deu ao negócio com a nova marca, admite o sapateiro, reconhecendo ter “valido a pena todo o trabalho de uma vida”.