Quarta-feira, Abril 24, 2024
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Entrevista a Manuel da Bernarda

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Um dos precursores da introdução do design na cerâmica decorativa, o empresário Manuel da Bernarda analisa, em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, a forma como o setor conseguiu dar a volta à crise e afirmar-se nos mercados internacionais altamente concorrenciais.

Um dos precursores da introdução do design na cerâmica decorativa, o empresário Manuel da Bernarda analisa, em entrevista ao REGIÃO DE CISTER, a forma como o setor conseguiu dar a volta à crise e afirmar-se nos mercados internacionais altamente concorrenciais. A paixão sobre a cerâmica transparece a cada frase deste arquiteto que nunca exerceu. 

REGIÃO DE CISTER (RC) > A cerâmica de Alcobaça está na moda?
manuel da bernarda (MB) > A indústria cerâmica de Alcobaça está na moda há muito tempo. Mas nos últimos anos as exportações estão a aumentar e as empresas estão a evoluir positivamente. Houve uma certa decadência na nossa indústria com os fenómenos da globalização, sobretudo com a abertura à China. Agora estamos a assistir a uma retoma, com menos efetivos nas fábricas, mas com empresas mais ágeis e mais concentradas na procura de valor acrescentado. Costumo pensar que as empresas estão hoje mais concentradas nas competências que desenvolvem, do que apenas no design conceptual. O cliente chega, olha para as capacidades da fábrica e quer incorporá-las no seu produto. Cada fábrica desenvolveu os seus próprios segredos e isso é útil para os clientes.

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RC > Mas hoje a cerâmica parece ter mais visibilidade…
MB > Diria que a cerâmica em Alcobaça tem ainda muito caminho para andar no que diz respeito à adesão do público. Têm sido feitas coisas muito interessantes, sobretudo devido à iniciativa privada, mas há muito mais para fazer. A cerâmica é um setor muito largo e tem formas de expressão muito diversas em termos artísticos. A recente iniciativa “Bom dia, cerâmica” teve grande relevância e trouxe até nós especialistas como Alexandre Pais, do Museu do Azulejo, que nos falou da iconografia de São Bernardo na azulejeria portuguesa. É necessário salvaguardar, também, os conhecimentos sobre a história da cerâmica. Por exemplo, nos nossos dias já não existe nenhum forno antigo da ‘louça’ de Alcobaça, que eram alimentados a caruma. Há muita coisa a fazer ainda no registo e conhecimento das práticas antigas e que merece ser estudado e trabalhado. Por razões familiares, estou ligado ao Museu Raul da Bernarda e tenho sido chamado a pronunciar-me sobre o tipo de atividades que ali podem ser desenvolvidas, o que muito me agrada. E o que tem sido falado com a Câmara vai no sentido de se aproveitar aquele espaço para a realização de ciclos sobre investigação histórica, levantamento de técnicas da cerâmica de Alcobaça e workshops, dedicados ao público ao geral e em especial aos mais jovens. Tem sido intenção até agora abordar atividades que sejam complementares, nomeadamente às de Jorge Pereira de Sampaio e também de Rui Serrenho, que há dias abriu um Museu muito interessante. A boa notícia é esta: a cerâmica tem tanta latitude para ser discutida, há muito para fazer e para ser investigado. E vontade para fazer.

RC > O que perspetiva para o Museu Raul da Bernarda?
MB > Para ter sustentabilidade a médio/longo prazo, um Museu em Alcobaça tem sempre de estar ligado ao Estado ou ao poder local. Só assim poderá ter um horizonte temporal. Pela iniciativa privada parece-me pouco provável que consiga ter sustentabilidade a longo prazo. Basta olhar para o que aconteceu ao espólio Vieira Natividade, que ainda hoje está encaixotado. A possibilidade de fazer evoluir o Museu Raul da Bernarda para um Museu Municipal de Alcobaça, que integrasse até outras coleções privadas, poderia ser um garante dessa intemporalidade que um Museu necessita para se afirmar. Sobre a cerâmica, há duas vertentes que é possível conciliar: por um lado, chamar as pessoas para conhecerem a história através da cerâmica, que é importante como uma vertente de animação cultural; e por outro, apoiar a investigação científica, até porque podem existir eventos que, correndo o risco de serem enfadonhos para o público em geral, são de grande relevância para a comunidade científica. Devemos tentar colocar Alcobaça no centro do conhecimento, mas admito que, a determinado ponto, existam iniciativas que se tornem enfadonhas para o cidadão comum. Pode até haver menor potencial do ponto de vista cultural e ser dirigido a especialistas. Mas isso não invalida que Alcobaça não deva ter essa dimensão de centro científico.

Devemos tentar colocar Alcobaça no centro do conhecimento, mas admito que, a determinado ponto, existam iniciativas que se tornem enfadonhas para o cidadão comum. Pode até haver menor potencial do ponto de vista cultural e ser dirigido a especialistas. Mas isso não invalida que Alcobaça não deva ter essa dimensão de centro científico. 

RC > Há sinais inequívocos de mudanças estruturais no setor. Hoje em dia até já existem clientes para pequenas produções, de algumas dezenas de peças…
MB > Sem dúvida. Desde a crise dos anos 1990, desencadeada desde a primeira guerra do Golfo, o processo de globalização continuou e as fábricas, erradamente, consideraram que a saída era produzir mais peças, julgando que assim se diluíam os custos fixos nos custos gerais. Isto veio a revelar-se uma estratégia errada, que também eu próprio assumi na minha empresa de então [Cerâmicas São Bernardo]. Existia uma competição de baixo preço e as empresas foram-se enterrando financeiramente. Houve, por isso, necessidade de rever a estratégia, que passava, inevitavelmente, por ter de dispensar efetivos, baixando os custos laborais. A SPAL, por exemplo, chegou a ter 680 trabalhadores, a Raul da Bernarda 280 e na Cerâmicas São Bernardo chegámos a ser 230. Era inevitável um redimensionamento. Havia quem pensasse que as fábricas eram heranças eternas. O caminho era sempre para a frente. Mas chegou o tempo de encarar a realidade, olhámos para as nossas competências e clientes que as procuravam e as fábricas foram reformatadas. Alguns empresários não se acautelaram, até que a situação se tornou completamente irreversível. Na Cerâmicas São Bernardo passámos de 140 trabalhadores para 40 e imediatamente atingimos uma situação de equilíbrio financeiro. Os clientes chegavam à fábrica e passaram a aceitar melhor o preço que considerávamos justo e daí deu-se um salto qualitativo necessário para a sobrevivência das empresas. Era necessário prescindir do cliente barateiro. Um outro fator de competitividade é a agilidade, dado que a sazonalidade das coleções é cada vez mais curta. A fábrica tem de ter criatividade, soluções técnicas e visuais, mas alguma criatividade nessa agilidade, até na maneira como se gere a empresa. A forma como se adaptam técnicas novas pode, também, trazer muitos benefícios à empresa. Embora as quantidades continuem a ser importantes, as coisas mudaram substancialmente. Hoje em dia, aceitamos encomendas de menor dimensão. Isso era impensável há uns anos.

RC > E os trabalhadores também tiveram de se adaptar à nova realidade…
MB > Como disse, as fábricas têm hoje muito menos efetivos e a resposta em tempo às necessidades dos clientes é fundamental. Essa flexibilidade é vista como uma vantagem para o cliente, comparativamente em relação à China. Essa disposição reflete-se a vários domínios nos trabalhadores, que têm de ser capazes de desempenhar várias funções. As coisas estão a mudar a grande velocidade, mas temos sempre presente um fantasma que não conseguimos exorcizar. As fábricas ainda têm alguma relutância em aceitar efetivos no quadro, perante os traumas da economia global. Mas estou convencido de que as coisas, neste aspeto, tenderão a melhorar.

RC > A concorrência é, hoje, mais saudável?
MB > Deixou de haver a concorrência que havia há 20, 30 anos, porque nesse período todas as fábricas se queriam copiar umas às outras…

RC > Sente que foi um precursor na introdução do design no setor. Sentia que era, de alguma maneira, incompreendido pelos seus pares?
MB > Não tentava ser compreendido, simplesmente tinha um prazer tão grande no que fazia que queria ter bons designers a trabalhar comigo na empresa. Fiz a fábrica em 1981 e sempre fui um entusiasta da cerâmica. O meu propósito passava por adquirir conhecimento na esperança que algum cliente pudesse reconhecer ali alguma coisa que lhe interessasse. Não tentava, apenas, impor as minhas emoções criativas ao cliente. A minha ação foi sempre guiada pelo entusiasmo de fazer bom design na cerâmica. A energia que me fazia mover era a mesma dos autores e dos designers: o gosto pela criatividade. Tendo, obviamente, em conta que, mais tarde ou mais cedo, esse trabalho mais criativo poderia ser repescado por algum cliente. Recebi algumas críticas, às quais até reconheço certa razão, porque se estava a gastar demais, mas o critério nunca foi um critério economicista. O que fiz foi sempre pelo entusiasmo pela cerâmica. E tive sorte porque, de alguma maneira, isso acabou por resultar.

RC > Como encarou o fim da Raul da Bernarda?
MB > Poucos anos antes de fechar, a empresa teve um momento excelente, em que parecia que ia dar a volta, em que foram feitas coleções novas de grande qualidade. Mas a decoração em decalque sorveu muita da energia financeira da fábrica naquele período e comprometeu o futuro. Às vezes as encomendas paravam a meio. Um ano antes de ser declarada a insolvência cheguei a chamar a atenção para o facto de haver gente a mais, mas a minha posição não foi bem recebida. Era inevitável a redução de pessoal para manter a empresa. A solução passaria por um projeto de recuperação, mas não foi possível reunir as condições adequadas para manter uma empresa que me dizia muito.

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