Podemos tentar esquecer, desvalorizar, mas o que ouvimos, se for importante, fica cá dentro, molda-nos, muda-nos, enforma-nos.
Susana Santos
Num dos seus mais belos poemas, Cesariny recorda-nos que “há palavras de vida há palavras de morte/ há palavras imensas, que esperam por nós/ e outras, frágeis, que deixaram de esperar/há palavras acesas como barcos” e no meio delas há, ainda, palavras que não encontro nesta nossa riquíssima língua e de que preciso para vos falar, outra vez, da gentileza. Uma delas é desouvir, a outra é desver.
Se é certo que podemos desdizer, ou seja, clarificar ou mesmo inverter o sentido de uma expressão, do lado de quem escuta, não temos palavra para quando queremos desouvir. E creio que não a temos porque, justamente, depois de recebermos o impacto das palavras, não nos é possível agir como se nunca tivessem sido proferidas. Podemos tentar esquecer, desvalorizar, mas o que ouvimos, se for importante, fica cá dentro, molda-nos, muda-nos, enforma-nos. Do mesmo modo, não podemos desver uma imagem particularmente impactante, seja ela pela beleza, seja pela fealdade. Certas imagens são tão impressivas que, depois de as vermos, já não seremos os mesmos, transformam-nos e alteram a nossa relação com o outro.
Daí a importância de sermos gentis. Conhecendo estas duas novas palavras, é mais fácil dizer que depois de proferida uma expressão ou feito um gesto dirigido a quem seja, não nos será possível recuar no tempo para desfazer aquele momento, já que o seu efeito é inevitável. Desver e desouvir representam ações impossíveis. E saber que são impossíveis ajuda-nos a cuidar melhor o que dizemos, o que fazemos e o que mostramos. Porque, caros amigos, depois de expelirmos as nossas palavras, os nossos pensamentos ou os nossos desejos, depois de exibirmos o incrível ou o monstruoso, não podemos esperar que os que nos rodeiam fiquem iguais. Depois de vermos e de ouvirmos, também não ficaremos iguais porque, num e noutro caso, não é possível desouvir ou desver o que seja. São ambas palavras que não existem, mas cuja inevitabilidade, as torna terríveis e “acesas, como barcos”.