Há muitos anos, eu julgava o mundo numa base maniqueísta: o que viesse dos EUA era bom, o que viesse da URSS era mau. Rezei pela “conversão da Rússia”, e, caso a minha devoção falhasse, desejava que os Estados Unidos tivessem os aviões mais avançados, os navios e porta-aviões mais letais.
In illo tempore, também adorava Israel, muito mediado por Anne Frank, cujo “Diário” me comoveu. Hoje, não gosto nada das realidades que detestava: se não gostava de uma URSS inexistente, gosto ainda menos do seu sucedâneo, a Rússia putinista sem ideologia, mas imperialista e rapace. Nesse tempo, a China não despertava amores nem ódios e, em termos políticos, nunca gostei da ideologia maoista. E, hoje, não gosto do Israel do vingativo Netaniahu.
Entre esse meu tempo mítico dos começos e este tempo desencantado, muita água política correu debaixo das pontes da realidade. Houve uma Guerra Irão-Iraque, entre irmãos desavindos, com apoios cegos do ocidente. Houve duas Guerras do Iraque que tornaram ainda pior o contexto político do Médio-Oriente, uma conferência de Madrid que abriu mais feridas, em vez de as cicatrizar. Houve os Acordos de Oslo e os assassinatos de homens de paz como Sadat, mas, sobretudo, Yitzhak Rabin, a ascensão de uma extrema-direita religiosa em Israel e de focos de nacionalismo por todo o lado. Houve o “Nine Eleven” e uma resposta mais movida pela raiva do que pela razão. Houve a traição de Putin ao seu povo com a troca de um bem-estar para a maioria por uma plutocracia para poucos. Há um PM israelita que, a contas com a justiça, foge para a frente. E, para piorar tudo isto, há, Trump, o presidente que convida e humilha os seus convidados, que se coloca a si mesmo no centro de um mundo que, segundo o seu autoconceito, o lambe ou quer lamber, e que quer exportar bonés MIGA para o Irão… A história não tem lado B: é o que foi e não volta atrás. É, porém, minha convicção que, sem estes acasos infelizes, não teríamos chegado a 7 de outubro de 2023 e, a partir daí, a algumas das barbáries que vivemos.