Lembro-me, quase como se fosse hoje. Depois de uma madrugada não esperada, houve um dia que parecia igual a todos os outros, embora não o fosse. Estava a trabalhar, no escritório de uma empresa de Vizela, sob a orientação do Sr. Artur Martins (Saudades, chefe bom!). Não tinha grande consciência política. Na verdade, um seminário diocesano não é propriamente o lugar mais propício à formação de consciências disruptivas. Mesmo assim, como sacerdote, escaparia a uma mobilização. Se a vocação vacilasse, como estava a vacilar, uma coisa começou a ser dominante no meu espírito: iria “dar o salto”, fugir à guerra. Razões? Não fui para o seminário por nada mais do que pelo desejo de criar pontes entre cores de pele, entre continentes e religiões. Porém, não gostaria de voltar de onde quer que fosse, morto, dentro de uma “caixa de pinho”, como dizia o Adriano Correia de Oliveira, e como confirmei pela má-sorte de um dos filhos da minha freguesia, Tagilde.
Sim, daria o salto. Porém, durante aquela manhã, o Sr. Artur disse-me que estavam a acontecer coisas em Lisboa, coisas importantes, parecendo que o Marcelo tinha sido preso. O Marcelo Caetano?, inquiri. Pois claro, esse mesmo, respondeu, enquanto lançava mais uns dados nas conta-correntes dos clientes. Com o avançar do dia, iam sendo dados pormenores, enquanto os alunos deixavam as escolas, em nome da liberdade, e as ruas, mais moderadamente do que em Lisboa, iam ficando mais movimentadas. Nos dias seguintes, iriam aparecer partidos, um conceito que quase desconhecia. Assim, num dos primeiros dias de maio, haveria de me tornar, por poucos anos, filiado do PPD, sempre sob a tutela do meu chefe bom, Artur Martins – a única filiação partidária que conheci em toda a minha vida. Vivi, porém, os dias, meses e anos seguintes com paixão e compromisso. Estive “quase-em-perigo”, dentro da sede, escrevendo comunicados, ou fora dela, participando em caravanas, comícios, pintando paredes…
Os meses e anos seguintes não trouxeram tanta festa. Houve nacionalizações selvagens, reformas agrárias que nada reformaram, 11 de março, 25 de novembro, atentados, confusões. Porém, olhando para o que aconteceu depois de tudo, tudo valeu a pena: não consigo imaginar um Portugal sem liberdade, sem partidos, sem democracia, apesar de haver pulsões totalitárias que prometem paraísos melhores. Só que… sem liberdade. Eu prefiro, sem condições, as imperfeições da liberdade que o 25 de abril nos deu.