Vivemos tempos de insegurança e de perigo, esse grande alimento do medo. Ora, o medo combate-se lutando ou fugindo.
Lutar é, nesta guerra, ser responsável. Fugir é o contrário, é furtar-se à responsabilidade, atribuindo-a aos outros.
E quem são os outros? Os outros são os culpados. E podem ser os que tivermos mais à mão. Os que estiverem na mira, os alvos mais fáceis. Os outros são os velhos, os pobres, os do norte, os do sul, são os jovens, são os de Lisboa. São os ciganos, os que andam de transportes públicos, os que espirram, os que tossem. Os outros são os imigrantes, os africanos, são as crianças, as autoridades, os outros são os que não lavam as mãos e os que não têm onde as lavar…
São quem, em cada momento, pudermos apontar. Porque o inferno são os outros, porque os outros têm a culpa.
Como Sartre, acredito que são as nossas escolhas que nos definem e que somos livres para as fazer. No entanto os outros, os que nos rodeiam, condicionam essas escolhas e, com elas, a nossa liberdade. Será por isso mais fácil atribuir aos outros todos os males e todas as culpas.
Como sair desta teia de explicações fáceis, urdida de frases feitas? Como combater o discurso vazio e as suas soluções simples para questões tão complexas como as nossas escolhas e o nosso papel na vida colectiva? Como combater o populismo em tempos de pandemia e de medo?
Só vejo um caminho, que é o de nos vermos como parte deste imenso colectivo que é a humanidade e que, pela primeira vez na sua história vive, em simultâneo, um perigo comum e iminente. Já não se trata de salvar o planeta – que é também é coisa maior, mas parece menos urgente – ou combater a fome em África – que parece estar mais longe – trata-se de proteger milhões de vidas e, com elas, a nossa própria vida.
Como atravessar este conflito sem cair na tentação de encontrar nos outros, nos de fora, os únicos culpados? Só me lembro de uma fórmula, que é a de incluir todos os outros na primeira pessoa do plural. Todos: velhos e novos, fortes e fracos, desempregados e malta das obras, polícias e estudantes, médicos e refugiados. Todos somos nós porque não havendo “outros” só há nós. Sem “outros” não há inferno.